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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Civilização cristã] - Nem o Sr. Presidente do Conselho…

Nem o Sr. Presidente do Conselho nem o Sr. Ministro das Colónias costumam escrever imprecisamente. Deparo porém [com] uma frase, usada de ambos e mais frequentemente do segundo, que padece de imprecisão. É a frase «civilização cristã». Trata-se do tipo de civilização que se diz que foi um dos elementos que imperialmente expandimos, e que, presumo, deveremos continuar a expandir imperialmente.

O emprego de idêntica expressão para o passado e futuro do Império induz, desde logo, numa primeira confusão. A especie de fé que originariamente expandimos foi, não a cristã em geral, mas a católica em particular. Desde logo se deve concluir que a expansão do catolicismo continua a ser hoje uma das nossas missões imperiais.

Sucede, porém, que nem as circunstâncias gerais da Europa, nem as nossas em particular, são as mesmas do que quando fizemos, e sobretudo quando iniciámos, os nossos descobrimentos e conquistas. Naquele tempo, primeiro na generalidade da Europa, depois na particularidade, não só nossa mas da maioria dos países, catolicismo e cristianismo estavam consubstanciados, e com eles consubstanciada a rede de actividades a que chamamos civilização. Uma missão

civilizacional podia pois considerar-se como naturalmente incluente (incluindo) uma dilatação do catolicismo.

Hoje não é assim, nem na Europa em geral, nem em Portugal em particular. Não só a fé cristã está em muitas partes e em muitas almas fortemente abalada, e por vezes abolida e encarada hostilmente, mas onde existe se encontra (não falando já na Igreja Grega) dividida entre o catolicismo, de uma parte, e numerosas espécies de protestantismo, da outra, desde a Igreja de Inglaterra até às extremas esquerdas - os Quakers, os Cientistas Cristãos e os Unitários. Cessou, pois a consubstanciação entre civilização e catolicismo, por isso mesmo que cessou entre cristianismo e civilização.

Se, porém, por civilização cristã se entende a civilização europeia, criada e desenvolvida por países que viveram longos séculos de cristianismo, a designação é mais aceitável. Trata-se de uma designação histórica, que não religiosa, e menos ainda civilizacional. Se, porém, se quer dar um nome verdadeiramente histórico, baseado num conceito de origem, à nossa civilização, então será mais claro, mais certo, mais profundo chamar-lhe civilização greco-romana. Lembremo-nos sempre do dito célebre de Sumner Maine: «Excepto as forças cegas da Natureza, tudo quanto neste mundo se move é grego em sua origem.» E através de Roma, enquadrado, apertado, agregada a experiência romana ao pensamento grego, nos veio a cultura grega, substância da nossa civilização.

O próprio cristianismo nada teria sido se por trás dele não tivesse estado, insuflando vida e alma aos elementos orientais (hebreus e outros), o ocultismo da Grécia, que formou parte dos textos sagrados, e designadamente os dois escritos atribuídos a S. João e as Epístolas de S. Paulo, fundador social do cristianismo; a metafísica da Grécia, que formou inteiramente o pensamento dos Padres e dos teólogos; o imperialismo romano, que converteu em religião social e depois universal, o que não era mais, no princípio, que um sistema de Mistérios, análogos em género, quando não em espécie, aos mistérios pagãos, como os de Eleusis, e análogos em tipo, quando não em conteúdo, aos da Maçonaria e das Ordens super-maçónicas.

Acho pois historicamente justo e sociologicamente mais certo chamar àquela civilização que andámos espalhando, e que deveremos continuar a espalhar, a civilização greco-romana. E, do ponto de vista político, no baixo sentido da palavra, evitar-se-iam confusões que nem a todos aproveitam.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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