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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Tece, amor, as grinaldas com que queres

Tece, amor, as grinaldas com que queres

Coroar o amor que nem sabemos ter,

Com brancas mãos em lento movimento

De papoulas e pobres malmequeres...

Tece-as para que ao menos o momento

Em que as teces nos possa pertencer.

Se para coroar o amor as teces

Pensas no amor tecendo-as, e assim amas;

Se vendo-te, em ti vejo que o conheces

Amo contigo o amor em que tu pensas.

E um momento o amor queima as suas chamas

Na ara das nossas almas já pretensas.

Mas se a grinalda é feita, o amor cessou.

Se é preciso entre nós o gesto e o gozo

Nunca o pensado amor levanta o voo.

Nunca da nossa noite de sentir

Raiou o sol do acto, e o olhar cobiçou

Uma coisa real que vá fruir.

No sonho do que nunca pode haver

Entre nós, porque há em nós o pensamento,

Gastamos o desejo sem o ter.

A taça cai do gesto mal seguro

Porque pensamos em beber, e o intento

Cansa o braço, e é entornado o néctar puro.

Viemos, meu amor, no fim da tarde.

O que há de sol é o que resta acima

Dos montes, poesia baça e sonho que arde,

E só pura saudade os céus anima.

O nosso olhar não ousa olhar o outro.

Outros tiveram por seu tempo o dia

Gozaram outros quando o sol era alto,

A vergonha que há em nós de sua orgia

É a vergonha de nós a não ousarmos.

Nós pensamos no amor em sobressalto

E para amarmos só nos falta amarmos.

Os deuses foram-se, e consigo foi

A clareza de alma para (com) a vida.

O que ontem era o gozo, é o que hoje dói.

O que ontem era a coisa possuída

É hoje só a coisa apetecida,

Ainda desejada e não ousada.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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