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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O cair da noite era lento, pacífico, como que adormecido.

O cair da noite era lento, pacífico, como que adormecido [?]. O doente sentiu a depressão da derrota, a agoniada tristeza da consciência de não ter feito nada, das suas intenções terem sido inutilidades, reais apenas para ele, sepultas ainda em vida no âmago do seu coração. Quis poder chorar mas tinha - e sentiu-o - a alma como que mirrada, seca, imaleável ao sentimento da dor. Suspirou apenas, mais mental do que fisicamente...

Fixou desprendidamente os olhos nas coisas que o rodeavam e angustiou-o passivamente a nitidez da banalidade objectiva de tudo... A grosseria da matéria era parte também das cadeiras, do toucador entre as duas janelas, da cómoda ao outro canto do quarto - nem se virou para a olhar, viu-a subconscientemente, meio por memória dela - e do papel que forrava as paredes, amarelado, já um tanto antigo, com um desenho qualquer de um dragão dourado, amiudadamente banal e oco como coisa, desde a (board above floor) até quase ao tecto. O tecto era de estuque branco, com um floreado no centro no meio do qual havia um gancho para candeeiro. Tudo isto foi-lhe doloroso ver, tão brutalmente real se lhe afigurava, tão mais real do que esperanças, compaixões, mágoas e desesperos.

As cortinas das janelas impediam ver para fora, uma porém (...) dum lado mostrava ao longe o azul muito azul do céu, muito azul, muito longe, muito azul, muito de um azul liso, puro e perfeito.

Esboçou mentalmente o gesto de encolher os ombros.

s.d.

Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

 - 25h.

«Marcos Alves»