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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

No limiar que não é meu

No limiar que não é meu

Sento-me e deixo o irreflectido olhar

Encher-se, sem eu ver; de campo e céu.

Se é tarde ou cedo, deixo de notar.

Nada me diz de si qualquer coisa que eu

Possa gozar.

Pelos campos sem fim

Sinto correr, porque na face o sinto,

Um vago vento, estranho todo a mim.

Não sei se penso, ou em que dor consinto

Que seja minha ou desespero sem ter fim,

Ou se minto.

Na inútil hora

Eu, mais inútil que ela, sem sentir

Fito com um olhar que já nem chora

A Dor ou desdém, dolo ou infiel sorrir,

O absurdo céu onde nenhuma coisa mora

Para eu fruir.

Apenas, vaga

Não uma esperança, mas uma saudade

Do tempo em que a esperança, como vaga,

Dava na praia da minha ansiedade,

Me toma e um surdo marulhar meu ser alaga

De vacuidade.

Mas acordo e com vão

Olhar ainda, mas já diferente,

Por estar ausente dele o coração,

E eu outra vez, nem mesmo descontente,

Fito o céu calmo, o campo, a alegre solidão

Inconsciente.

Nada, só o dia

— Se é tarde ou cedo continuo a errar —,

Alheio a mim, a tudo dá a alegria

De não ter coração com que agitar

O corpo. E, quando vier a noite, tudo esfria

Mas sem chorar.

Isto e eu comigo

Posto no eterno aquém das coisas calmas

Que a vida externa mostra ao céu amigo —

Campos ao sol, vivas flores almas.

Isto só e não ter o coração abrigo

Nem sol as almas.

16-2-1920

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

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