Deixo ao cego e ao surdo
Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.
Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência...
Nada que vejo é meu.
Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.
E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.
E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.
Ah, tanto como a terra
E o mar e o vasto céu.
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.
Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Se quanto sinto é alheio
E de mim se sente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?
Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deixo teu diverso modo
Diversos modos sou.
Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990).
- 168.