Dir-me-ão que a poesia nada tem com os fenómenos puramente intelectuais.
Dir-me-ão que a poesia nada tem com os fenómenos puramente intelectuaes. A poesia, porém, é um produto intelectual. Não são indiferentes pois as ideações que expõe ou que subentende.
A Or[ação] à Luz do sr. Guerra Junqueiro seria perfeita se não fossem os restos do misticismo religioso que encerra. A poesia do sr. G[uerra] J[unqueiro] está fora do seu tempo. Não pode ser eterna por isso.
Há um misticismo científico possível O caso é encontrá-lo. A ciência não destruiu o mistério.
Para além do que a sua tocha ilumina fica a treva que nos cerca. O que é preciso é o poeta que cante essa treva sem lhe chamar luz. O mistério é suficientemente grande para não precisar de alcunhas.
Da poesia do sr. G[uerra] J[unqueiro] para a do sr. T[eixeira] de P[ascoaes] há retrocesso. O elemento místico aumenta e o científico diminui. Mas o sentimento de fraternidade pelas coisas é bem o sentimento que a ciência, quando ganha a nossa emoção, em nós produz. Mas essa fraternidade o que não deve é ter carácter religioso, e muito menos cristão.
Pior ainda, é na poesia do sr. T[eixeira] de P[ascoaes], a perpétua confusão entre o físico e o psíquico e entre os mais sentidos. Isso denota uma perigosa e doentia falta de atenção às representações que na psyche se formam dos dois distintos «mundos». Dizer que uma serra está «coroada de neve e de silêncio» implica uma incapacidade em distinguir o carácter totalmente diferente dos fenómenos «neve» e «silêncio», um dos quais é visual e o outro auditivo, no modo como são percebidos.
(Quando virá o poeta cujos sentidos estejam em comunicação legítima e sã com a Natureza?)
É belo? Talvez. Mas é o belo doentio e anormal. E o belo anormal não será belo? Por certo que o é, mas é belo sem poder de eternidade. O doentio, na vida, liquida-se a si-próprio; o doentio, na arte - paralelamente, porque é sempre o doentio - do mesmo modo se elimina a si-próprio, isto é, não atinge a eternidade.
Só a visão nítida das coisas é que pode ser a visão eterna das coisas. Há várias maneiras doentias de interpretar a presença de uma árvore. Há só uma maneira sã. Fica a maneira sã de a interpretar, porque é [a] que tem no apelo universal e eterno; passa, com o género de doença, pelo qual interpreta, o modo doentio de olhar ou interpretar. O que dura na arte é a visão de eterno que uma época tem.
Cada época vê o eterno a seu modo, tem as ideias que a caracterizam, e essas são as que caracterizam a sua saúde e não a sua doença.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
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