I - O facto fundamental que nos é permitido observar na existência...
I
O facto fundamental que nos é permitido observar na existência é o existir nela, como sua essência, um sujeito e um objecto. Não conhecemos outro modo de ser que um em que haja uma coisa que tem consciência e outra coisa de que se tem consciência. Tão impossível é conceber uma existência impensada, insensível, como um pensamento sem objecto. (Tão impossível é, que nos mais [...] sistemas da metafísica Deus se pensa a si, quer dizer é o objecto dos seus pensamentos, objecto ainda assim).
Nota: Portanto a crença na realidade absoluta do objecto é puramente metafísica como a de crer na realidade absoluta do sujeito
O fundamento da ciência é pois a existência de um sujeito e de um objecto. Pertence ao filósofo das ciências constatar este facto; não Ihe pertence analisá-lo, nem perguntar o que são, em que íntima e absoluta relação se encontra esse sujeito e esse objecto. Investigações dessa ordem pertencem, como veremos, à metafísica. A existência dum sujeito e dum objecto é a fronteira nítida dos países da metafísica e da ciência. Para cá a observação, a experimentação e o raciocínio sobre elas; para lá raciocínio puro.
A suprema abstracção da nossa experiência é pois esta: existência dum sujeito e dum objecto e duma relação entre eles.
(Assim a ciência não deve nunca ignorar que não pode passar este limite, e que a sua base é um mistério. A ciência não é — devemos lembrar-nos disso sempre — a verdade absoluta, mas a verdade absolutamente relativa).
II
A natureza íntima do sujeito e do objecto não sabemos nem cientificamente podemos saber. Quanto às suas relações, isto é, às suas relações aparentes alguma coisa podemos investigar, porque essas relações são o mundo. Já o dissemos quando vimos que o mundo consiste de sujeito, objecto, e relações entre eles. Do sujeito e objecto conhecemos apenas a existência, que eles existem.
A base dessa realidade é a multiplicidade. Há muitos sujeitos e muitos objectos.
(Objectar-nos-ão aqui: «Dizeis que há muitos sujeitos e muitos objectos. Antes dissestes que o supremo absoluto era um sujeito, e um objecto. Ora a realidade dá muitos sujeitos e muitos objectos. A última que os torna em um não é metafísica?» Não. Nós só dizemos um porque não há outro modo de dizer. O mundo implica sujeito e objecto e relação entre estes.
Pode ser que esse sujeito seja múltiplo em si mesmo, pode ser que esse objecto também o seja; pode ser que seja um. Mas isso é que pertence à metafísica. Decidir se em si sujeito e objecto é um ou muitos, pertence à metafísica e não à ciência ou à filosofia dela.
Reparemos bem, nós não sabemos se há muitos sujeitos; pode ser que seja um sujeito em cada um.
Parece evidente que a matéria sendo uma só, o espírito seja também só um.
Se a Ciência provar que se pode transformar «matéria» em «força» — o resultado será só em que força e matéria são ambos matéria, Visto que o sujeito não se pode converter no objecto, o exterior no interior. É impossível. Matéria e espírito — eis o dualismo imudável — inconvertível. Não há matéria sem espírito, nem espírito sem matéria. É a frase de Büchner — e se trocarmos força por espírito o [...] já sabemos porque é.
Não sabemos como se dão as relações do sujeito e objecto.
Sabemos (1) que existem;
(2) que são (para nós) fundamentalmente diferentes.
Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.
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