Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

Sonho sem fim nem fundo.

Sonho sem fim nem fundo.

Durmo, fruste e infecundo.

Deus dorme, e é isso o mundo.

Mas se eu dormir também

Um sono qual Deus tem

Talvez eu sonhe o Bem —

O Bem do Mal que existo.

Esse sonho, que avisto,

Em mim chamo-lhe o Cristo.

Agora o seu ser ausente,

Surge o que há de presente

Na ausência, eternamente.

Não foi em cruz erguida

Num calvário da vida,

Mas numa cruz vivida

Que foi crucificado

O que foi, em seu lado,

Por lança golpeado.

E desse coração

Água e sangue virão,

Mas a verdade não...

Só quando já, descido

De aonde foi subido

Para ser escarnecido,

Seu corpo for baixar

Onde se há-de enterrar,

O haverei de encontrar.

Desde que o mundo foi

No mundo à alma dói

O que ao mundo destrói.

Desde que a vida dura

Tem a vida a amargura

De ser mortal e impura

E assim na Cruz se fez

A vida, para que a nós

Veja o melhor de nós.

O túmulo fechado

Aberto foi achado

E vazio encontrado.

Meu coração também

É o túmulo do Bem,

Que a vida bem não tem.

Mas há um anjo a me ver

E a meu lado a dizer

Que tudo é outro ser.

2-7-1934

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).

 - 145.