CANTO A LEOPARDI
CANTO A LEOPARDI
Ah, mas da voz exâmine pranteia
O coração aflito respondendo:
«Se é falsa a ideia, quem me deu a ideia?
Se não há nem bondade nem justiça
Porque é que anseia o coração na liça
Os seus inúteis mitos defendendo?
Se é falso crer num deus ou num destino
Que saiba o que é o coração humano,
Porque há o humano coração e o tino
Que tem do bem e o mal? Ah, se é insano
Querer justiça, porque na justiça
Querer o bem, para que o bem querer?
Que maldade, que [...] , que injustiça
Nos fez para crer, se não devemos crer?
Se o dúbio e incerto mundo,
Se a vida transitória
Têm noutra parte o íntimo e profundo
Sentido, e o quadro último da história,
Porque há um mundo transitório e incerto
Onde ando por incerteza e transição,
Hoje um mal, uma dor, e [...] , aberto
Um só dorido coração?»
[...]
Assim, na noite abstracta da Razão, Inutilmente, majestosamente,
Dialoga consigo o coração,
Fala alto a si mesma a mente;
E não há paz nem conclusão,
Tudo é como se fora inexistente.
Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).
- 155.