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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Não sei de que maneira a sucessão

Não sei de que maneira a sucessão

Dos dias tem achado este meu ser

Que a si mesmo se tem ignorado.

Não sei que tempo vago atravessei

Nos breves dias de febril ausência

De parte do meu ser. Agora

Não sei o que há em mim que sobrenada

A ignorada cousa que perdi.

Cansado já doutra maneira vaga,

Sinto-me diferentemente o mesmo;

Não sei detidamente o que mudou

Em mim, nem sei o que de mim me resta

A não ser esta vaga e horrorosa

Sufocação da existência inerte

Num pavor. Mas a mesma já não é.

Sinto pavor, mas já não é o mesmo

Pavor, nem é a mesma solidão

D'outrora, a solidão em que me sinto.

Queimei livros, papéis,

Destruí tudo por ficar bem só,

Por quê não sei, não sabê-lo desejo.

Resta-me apenas um desejo ermo

De amar e de sentir, mas não me sinto

Educado no ser ou natural

Ao sentimento, à emoção, à vida,

Mas alheado (...) e negramente

E orgulhoso mais por ser distante

Do que distante por ser orgulhoso.

Pesado fardo da grandeza! Horror!

Não a reis ou a príncipes lhes pesa

E o responsável ânimo e(...)

Como a mim o existir. Pesa-me mais

Do que dantes, mas — como o sei?

Menos misteriosamente, menos

Intimamente. Estou mais apagado

E a minha antiga dor imorredoura

Mais escondida dentro em mim de mim

E eu menos, não sei como, isolado

Só de mim mesmo, perdido (...)

O último abrigo, horroroso e  (...)

Mas com tecto.

Como que nu me sinto e exilado

Entre coisas estranhas, (...)

Só que o horror profundo doutro tempo

Já me deixou. Pensava tudo estranho,

Hoje, mais vaga — menos (...) -mente

Eu sinto tudo estranho, sinto-o, sinto-o

Fora do pensamento não sei como

E mais perto do mundo vagamente.

Neste atordoamento nasce em mim

Qualquer coisa de negro e estranho e novo

Que pressinto com medo, e que, outrora,

Arredado de mim dentro em minha alma,

Eu pressentia sem o pressentir,

Sem consciência consciente dela.

Como a linha de negro num poente

Se ergue em negra nuvem e enegrece

E cresce, levantando-se e obumbrando

O firmamento, sinto despontar

Prenúncios de tormento e confusão

Num silêncio que insiste dentro em mim.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

 - 83.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.105).