Não sei de que maneira a sucessão
Não sei de que maneira a sucessão
Dos dias tem achado este meu ser
Que a si mesmo se tem ignorado.
Não sei que tempo vago atravessei
Nos breves dias de febril ausência
De parte do meu ser. Agora
Não sei o que há em mim que sobrenada
A ignorada cousa que perdi.
Cansado já doutra maneira vaga,
Sinto-me diferentemente o mesmo;
Não sei detidamente o que mudou
Em mim, nem sei o que de mim me resta
A não ser esta vaga e horrorosa
Sufocação da existência inerte
Num pavor. Mas a mesma já não é.
Sinto pavor, mas já não é o mesmo
Pavor, nem é a mesma solidão
D'outrora, a solidão em que me sinto.
Queimei livros, papéis,
Destruí tudo por ficar bem só,
Por quê não sei, não sabê-lo desejo.
Resta-me apenas um desejo ermo
De amar e de sentir, mas não me sinto
Educado no ser ou natural
Ao sentimento, à emoção, à vida,
Mas alheado (...) e negramente
E orgulhoso mais por ser distante
Do que distante por ser orgulhoso.
Pesado fardo da grandeza! Horror!
Não a reis ou a príncipes lhes pesa
E o responsável ânimo e(...)
Como a mim o existir. Pesa-me mais
Do que dantes, mas — como o sei?
Menos misteriosamente, menos
Intimamente. Estou mais apagado
E a minha antiga dor imorredoura
Mais escondida dentro em mim de mim
E eu menos, não sei como, isolado
Só de mim mesmo, perdido (...)
O último abrigo, horroroso e (...)
Mas com tecto.
Como que nu me sinto e exilado
Entre coisas estranhas, (...)
Só que o horror profundo doutro tempo
Já me deixou. Pensava tudo estranho,
Hoje, mais vaga — menos (...) -mente
Eu sinto tudo estranho, sinto-o, sinto-o
Fora do pensamento não sei como
E mais perto do mundo vagamente.
Neste atordoamento nasce em mim
Qualquer coisa de negro e estranho e novo
Que pressinto com medo, e que, outrora,
Arredado de mim dentro em minha alma,
Eu pressentia sem o pressentir,
Sem consciência consciente dela.
Como a linha de negro num poente
Se ergue em negra nuvem e enegrece
E cresce, levantando-se e obumbrando
O firmamento, sinto despontar
Prenúncios de tormento e confusão
Num silêncio que insiste dentro em mim.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
- 83.1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.105).