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Fernando Pessoa

O INTERREGNO - Terceira Justificação

O INTERREGNO. - Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal.

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TERCEIRA JUSTIFICAÇÃO DA DITADURA MILITAR

Além de Portugal presente não poder ter vida institucional, nem também vida constitucional, não pode ele, ainda, ter vida de opinião pública. Assim lhe falta também o que é, não só o fundamento interno de todo governo, mas, por uma fatalidade histórica, o fundamento externo de todo governo de hoje.

Há só três bases de governo — a força, a autoridade e a opinião. Qualquer forma de governo tem que participar, para ser governo, de todas elas: sem força não se pode governar, sem opinião não se pode durar, sem autoridade não se pode obter opinião. Embora, porém, qualquer governo de todas participe, uma delas haverá em que mais particularmente, em que distintivamente, se apoie.

O governo tipicamente de força existe só nas sociedades bárbaras ou semibárbaras; regressa atipicamente nos episódios ditatoriais das sociedades civilizadas. É o governo em que se exprimem aquelas civilizações em formação, em que ainda o estado de guerra é a condição normal e constante; por isso caracteriza também aqueles períodos das civilizações formadas, em que o estado de guerra, civil ou outra, ressurge. Ao governo de força sucede, na linha de passagem das coisas, o de autoridade: a autoridade é a força consolidada, translata, a força tornada abstracta, por assim dizer. A estabilização dos governos de força os converte, passado tempo, em regimes de autoridade. Mas a autoridade não dura sempre, porque nada dura sempre neste mundo. Sendo a autoridade um prestígio ilógico, tempo vem em que, degenerando ela como tudo, a inevitável crítica humana não vê nela mais do que o ilogismo, visto que o prestígio se perdeu. Assim, no decurso das civilizações, se chega a um ponto em que — à parte os recursos incaracterísticos à força — se tem que estabelecer, ou buscar estabelecer, um sistema de governo fundado na opinião, pois não resta outro fundamento para a existência de um governo.

Europa, e nós com ela, seguiu este curso fatal. A todos nos confronta um problema político: extrair da opinião um sistema de governo. Não temos outro recurso. Não podemos recorrer à força, porque a força, numa sociedade formada, não é mais que um travão, aplicável só nos perigos e nas descidas; se a quisermos sistematizar, pagaremos o preço por que são penhoradas as sociedades em que se pretende coordenar o ocasional, isto é, realizar uma contradição. Nem podemos recorrer à autoridade, porque a autoridade é incriável e indecretável, e a tradição, que é a sua essência, tem por substância a continuidade, que uma vez quebrada, se não reata mais. Temos pois que encarar, por necessidade histórica, o problema de extrair da opinião um sistema de governo. Se é este o problema, não cuidemos que é outro.

Para nos nortearmos neste fito, temos, primeiro, que ver em que consiste a opinião. É o que nunca fizeram nem os defensores nem os críticos dos sistemas que assentam nela.

Qualquer opinião é de uma de três espécies, conforme assente no instinto (ou na intuição), no hábito, ou na inteligência. Por instinto se entende aquele fenómeno psíquico, inegável, porém difícil de explicar, pelo qual, nos animais chamados inferiores, a vida se conduz certa sem mostras de "inteligência", ou, até, condições anátomo-fisiológicas, para a existência dela. Nos animais chamados superiores os instintos subsistem, mas são neles perturbados pelo hábito e pela inteligência, que a eles, instintos, são diversamente antagónicos. Nestes animais superiores, e notavelmente em o homem, aparece, ainda, uma forma superior do instinto a que chamamos intuição: dela procedem os fenómenos estranhos, porém reais, a que por comodidade se chamou supernormais — os palpites, a inspiração, o espírito profético. A intuição operando como o instinto, porque é instinto, usurpa, e muitas vezes supera, as operações da inteligência. Os fenómenos do instinto e da intuição têm preocupado, mais que quaisquer outros, a ciência psicológica moderna; assentou ela já na certeza de que o campo do que chamou subconsciente é vastamente maior que o da razão e que o homem, verdadeiramente definido, é um animal irracional. Só por orgulho ou preconceito se pode não ver que a inteligência é — como Huxley abusivamente supunha que a simples consciência era — o que chamou um epifenómeno. Isto é, a inteligência não faz mais que espelhar, esclarecendo-os para nós e, pela palavra, para outrem, os instintos obscuros, as solicitações intuitivas, do nosso temperamento.

Por hábito entende-se aquela disposição da índole que é, em sua origem, e em contrário do instinto, estranha ao indivíduo, sendo derivada de um ambiente qualquer. Os preconceitos, as crenças, as tradições — tudo quanto, não procedendo da inteligência, também não procede do instinto — se derivam do hábito. É muitas vezes difícil distinguir uma opinião vinda do instinto de uma opinião vinda do hábito, por isso que o hábito é um instinto imposto, ou artificial — uma "segunda natureza", como com razão se lhe chamou.

As manifestações destas quatro ordens de opinião diferençam-se entre si da seguinte maneira: o instinto simples é instantâneo e sintético, é individual, e tem por objecto só coisas concretas; é centrípeto, ou egoísta, pois o será forçosamente o que for ao mesmo tempo individual e concretizante. O instinto superior, ou intuição, difere do instinto simples em que pode ter por objecto o abstracto e o indefinido, e em que, na proporção em que o tiver, deixará de ser centrípeto ou egoísta. O hábito é igual ao instinto simples, salvo em não ser individual; como esse, porém, tem por objecto o concreto e o definido. A inteligência é analítica, é individual e tem por objecto o abstracto. Em toda opinião entra uma parte de cada um destes elementos, pois, na vida é tudo fluído, misturado, incerto, mau de analisar sumariamente e impossível de analisar até o fim.

Passando agora de considerar a simples opinião, para atender ao que nos interessa, que é a opinião colectiva ou "pública", desde logo vemos que ela tem que assentar ou no hábito ou na chamada intuição. No instinto simples não pode assentar, porque ele é só individual — da vida, que não da sociedade. Na inteligência não pode também fundar-se, porque a inteligência, por ser a expressão do temperamento, é, por isso mesmo, a expressão de instintos, de hábitos a de intuições, escusando nós pois de atender a ela, quando devemos atender àquilo de que é espelho.

O conceito vulgar de democracia, o que pretende basear a opinião pública na soma das opiniões individuais fornecidas pelas inteligências; o que supõe que uma sociedade numericamente mais culta (que não só mais culta em seus representantes superiores) se orienta e governa melhor que uma sociedade quantitativamente menos culta — este conceito é forçosamente erróneo. Acresce que, como não há ciência social, não pode haver cultura sociológica. Se a houvesse, como haveria, sobre os pontos mais simples e essenciais da vida social, divergência de opiniões entre homens da maior cultura? Em que é que a cultura em geral, e a cultura sociológica em particular, orientam socialmente, se o prof. A., da Universidade de X, é conservador, o prof. B., da Universidade de Y, é liberal, e o prof. C., da Universidade de Z, é comunista? De que lhes serve a cultura se entre si divergem num congresso, do mesmo modo que três operários numa taberna? Longe de, como se disse, a "democracia sem luzes " ser um "flagelo", é a democracia com luzes que o é. Quanto maior é o grau de cultura geral de uma sociedade menos ela se sabe orientar, pois a cultura necessariamente se quer servir da inteligência para fundar opiniões, e não há opinião que se funde na inteligência. Assenta ou funda-se no instinto, no hábito, na intuição, e a intromissão abusiva da inteligência, não alterando isso, apenas o perturba. A democracia moderna é a sistematização da anarquia.

Sucede ainda, quanto à inteligência, que ela, como é analítica, é desintegrante; como é abstracta, e por isso fria, é incomunicativa; e como é a expressão de um temperamento, e o temperamento é individual, separa os homens em vez de os aproximar. O hábito, ao contrário, "pega-se"; sobretudo se "pega" um hábito social. A intuição, também, transmite-se — transmite-se por uma emissão indefinível, um "fluído", como já se lhe chamou, havendo quem creia, talvez com razão, que esse fluido é não só real, mas material. É só no hábito, pois, ou na intuição, que a opinião pública se pode fundamentar. E é num e noutra que, de facto, se fundamenta. No hábito se baseia aquela opinião pública a que, com razão no termo, chamamos conservadora. A razão de se ser conservador é a mesma de se não poder deixar de fumar. Há, porém, uma diferença, que em certo modo justifica o receio do novo que constitui a essência do conservantismo. Quem deixa de fumar, e se dá mal com fazê-lo, pode tornar a fumar. Mas um hábito social, isto é, uma tradição, uma vez quebrado, nunca mais se reata, porque é na continuidade que está a substância da tradição. Além de que, não sabendo ninguém o que é a sociedade, nem quais são as leis naturais por que se rege, ninguém sabe se qualquer mudança não irá infringir essas leis. Em igual receio se fundamentam as superstições, que só os tolos não têm — no receio de infringir leis que desconhecemos, e que, como as não conhecemos, não sabemos se não operarão por vias aparentemente absurdas. A tradição é uma superstição.

É a opinião de hábito que mantém e defende as sociedades; equivale à força que, no organismo físico, resiste à desintegração. A opinião de hábito obra sempre deste modo restritivo; umas vezes é útil porque entrava a decadência, outras é nociva, porque entrava o progresso. Sem a opinião de hábito não existiriam nações; uma nação, aliás, não é senão um hábito. Mas só com a opinião de hábito não existiriam nações progressivas; nem, até, existiriam nações, pois se não teria progredido até a fundação delas. A mais antiga tradição de qualquer país é ele não existir.

Na intuição — que, em contrário do simples instinto, vê, como a inteligência, o futuro, que não só o passado — se funda aquela opinião com que se promove o progresso das sociedades, mas, se a do hábito a não equilibrar, também a desintegração delas. Toda fórmula social nova é elaborada e imposta pela intuição, se bem que a sobreposição da inteligência lhe perturbe e corrompa a expressão. Por exclusão de partes se vê que é elaborada e imposta pela intuição. O instinto nada tem com ela. O hábito opõe-se-lhe. A inteligência, por si só, nem tem ciência social em que se funde para a supor boa ou viável, nem experiência social (visto que ela é nova) em que para tal se funde. Só a intuição — a fé, se se quiser — pode crer na virtude e na viabilidade do que ainda se não experimentou. Por isso, com razão se pode dizer que toda opinião anticonservadora é um fenómeno religioso; que todo o partido anticonservador é uma agremiação mística.

Toda vida consiste no equilíbrio de duas forças, a de integração e a de desintegração — o anabolismo e o catabolismo dos fisiologistas. A só integração não é vida; a só desintegração é morte. As duas forças assim opostas vivem em perpétua luta e é essa perpétua luta que produz o que chamamos vida. A guerra, disse Heráclito, é a mãe de todas as coisas. Mas, para que a

vida subsista, é necessário que as duas forças opostas sejam de intensidade praticamente igual; que se oponha, que se combatam, porém que nenhuma delas sobreleve a outra. A vida é a única batalha em que a vitória consiste em não haver nenhuma. É isso o equilíbrio; e a vida é uma média entre a força que a não quer deixar viver e a força que a quer matar — a diagonal de um paralelogramo de forças, diferente das duas e por elas composta. Se assim é na vida individual, assim será na vida social, que é também vida. Consiste a vida social no equilíbrio de duas forças opostas, que já vimos quais eram. Têm as duas forças que existir, para que haja equilíbrio, e, embora haja equilíbrio, que ser opostas. Um país unânime numa opinião de hábito não seria país — seria gado. Um país concorde numa opinião de intuição não seria país — seria sombras. O progresso consiste numa média entre o que a opinião de hábito deseja e o que a opinião de intuição sonha. Figurou Camões, nos Lusíadas, em o Velho do Restelo a opinião de hábito, em o Gama a opinião de intuição. Mas o Império Português nem foi a ausência de império que o primeiro desejara, nem a plenitude de império que o segundo sonharia. Por isso, por mal ou por bem, o Império Português pôde ser.

O equilíbrio das forças vitais não procede, porém, só da sua igual intensidade, se não também da sua igual direcção, em que, em certo modo, essa igual intensidade se funda. As duas forças têm de comum o serem a mesma força, que é o organismo em que vivem, e que diversamente servem de manter. Todo lógico sabe que, para haver contraste entre duas ideias, tem que haver identidade no fundamento delas. Em melhores palavras — para que duas espécies entre si se oponham, têm que ser espécies do mesmo género. Pode opor-se o preto ao branco, porque ambos são cores. Não pode opor-se o preto a um triângulo, porque um é espécie do género cor e o outro é espécie do género forma. Assim, para que nas forças vitais se possa dar oposição com equilíbrio, é mister que, no fundo, pertençam ao mesmo género, o que, em matéria de forças, quer dizer que tendam para o mesmo fim. Esse fim, visto que existem no mesmo organismo, e têm, por assim dizer, uma identidade de localização, é a vida desse organismo. Se a força de integração, que é por natureza centrípeta, se localizar em certos pontos ou órgãos, sofrerá o organismo dissolução ou desvitalização, pois os pontos livres ficarão entregues a uma desintegração completa. Se a força de desintegração, que por natureza é centrífuga, exceder o seu limite orgânico, ficará o organismo ocupado pela força oposta, e do mesmo modo sofrerá a morte ou a desvitalização. Como no individual, assim no social. Se a opinião de hábito tiver, em vez de um fito nacional, um intuito menos que nacional — província, classe, família,... — envolverá em ruína a sociedade, porque a deixara livre à opinião de intuição, que estabelecera o caos em todos os outros elementos sociais. Se a opinião de intuição tiver um intuito mais que nacional — humanidade, civilização, progresso... — do mesmo modo arruinará a sociedade, pois a deixará livre à opinião de hábito, que se apoderará de todos os seus outros elementos.

No fundo, como se trata de um sistema de forças, a uma acção corresponde sempre uma igual reacção. A uma acção excessiva corresponderá pois uma reacção igualmente excessiva, e, como um pêndulo que oscile demasiadamente, o sistema acabará por parar. Temos exemplo dos dois casos nos estados paralelos porém inversos, da vida portuguesa sob os Braganças, e da vida presente da Rússia. Nesse nosso período, vivemos concentrados na tradição em nossa vida familial, provincial e religiosa; sucedeu que nos desnacionalizámos completamente na nossa administração, na nossa política e na nossa cultura. No período presente da Rússia, tendo a opinião de intuição excedido por inteiro a nação em favor de uma entidade socialmente mítica chamada "humanidade", a opinião de hábito estabeleceu uma reacção igualmente forte, recuou para trás da família, da província, da religião tradicional, e fixou-se no último elemento social, o indivíduo, que, como tal, é um animal somente. Assim, em virtude da reacção excessiva que provoca, toda doutrina social extrema produz resultados diametralmente opostos aos que pretende produzir. O tradicionalismo orgânico produz estrangeiros; o progressivismo orgânico produz animais. É na comunidade do conceito de nação que está a base para a luta profícua, porque para o íntimo equilíbrio, entre as forças sociais opostas. No caso notável do início dos nossos Descobrimentos, a opinião de hábito se opunha à novidade deles, a de intuição a promovia; porém uma e outra não pensavam fora do ideal de grandeza pátria, ou seja, no fundo, do ideal de império. Assim pôde o Império Português, quando por mal ou por bem, veio a ser, ser informado por toda a alma de Portugal.

Já acima esboçámos, em simples exemplo ocasional, qual seja a situação presente de Portugal quanto à sua opinião pública. Concentrados dos Filipes ao liberalismo, numa estreita tradição familial, provincial e religiosa; animalizados, nas classes médias, pela educação fradesca, e, nas classes baixas, bestializados pelo analfabetismo que distingue as nações católicas, onde não é mister conhecer a Bíblia para se ser cristão; desenvolvemos, nas classes superiores, onde principalmente se forma a opinião de intuição, a violenta reacção correspondente a esta acção violenta. Desnacionalizámos a nossa política, desnacionalizámos a nossa administração, desnacionalizámos a nossa cultura. A desnacionalização explodiu no constitucionalismo, dádiva que, em reacção, recebemos da Igreja Católica. Com o constitucionalismo deu-se a desnacionalização quase total das esferas superiores da Nação. Produziu-se a reacção contrária, e, do mesmo modo que na Rússia de hoje, se bem que em menor grau, a opinião de hábito recuou para além da província, para além da religião, em muitos casos para além da família. Surgiu a contra-reacção: veio a República e, com ela, o estrangeiramento completo. Tornou a haver o movimento contrário; estamos hoje sem vida provincial definida, com a religião convertida em superstição e em moda, com a família em plena dissolução. Se dermos mais um passo neste jogo de acções e reacções estaremos no comunismo e em comer raízes — aliás o término natural desse sistema humanitário.

É este o estado presente dos dois elementos componentes da opinião pública portuguesa.

Ora num país em que isto se dá, e em que todos sentem que se dá, num país onde, sobre não poder haver regime legítimo, nem constituição de qualquer espécie, não pode, ainda, haver opinião pública em que eles se fundem ou com que se regulem, nesse país todos os indivíduos, e todas as correntes de consenso, apelam instintivamente ou para a fraude ou para a força, pois, onde não pode haver lei, tem a fraude, que é a substituição da lei, ou a força, que é a abolição dela, necessariamente que imperar. Nenhum partido assume o poder com o que se lhe reconheça como direito. Toda situação governante em Portugal, depois da queda da monarquia absoluta, é substancialmente uma fraude. A fraude, pune-a a lei; porém, quando a fraude se apodera da lei, tem que puni-la a simples força, que é o fundamento da lei, porque é o fundamento do seu cumprimento. Nisto se funda o instinto que promove as nossas constantes revoluções. Têm-nos elas tornado desprezíveis perante a civilização, porque a civilização é uma besta.

Nossas revoluções são, contudo, e em certo modo, um bom sintoma. São o sintoma de que temos consciência da fraude como fraude; e o princípio da verdade no conhecimento do erro. Se, porém, rejeitando a fraude como fundamento de qualquer coisa, temos que apelar para a força para governar o país, a solução está em apelar clara e definidamente para a força, em apelar para aquela força que possa ser consentânea com a tradição e a consecução da vida social. Temos que apelar para uma força que possua um carácter social, tradicional, e que por isso não seja ocasional e desintegrante.

Há só uma força com esse carácter: é a Força Armada.

É esta a terceira Doutrina do Interregno, a terceira e última justificação da Ditadura Militar.

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SEGUNDO AVISO

Chegados a este ponto os que leram este opúsculo, parecer-lhes-á que, para justificar a Ditadura Militar, não havia mister que o fizéssemos com mais que um só dos fundamentos expostos, nem que, em todos eles, empregássemos razões com tal desenvolvimento. Há, porém, que explicar que o triplo carácter da justificação, assim como o pormenor de toda ela, têm um intuito mais largo que o de só justificar. Para o explicar e o definir, dividamos em três razões o relato do que nos propusemos.

Em primeiro lugar, vejamos claro quanto à natureza da coisa justificada. Repetiremos o que já dissemos. Este opúsculo contém uma justificação completa da Ditadura Militar em Portugal presente. Com isso justificámos a Ditadura de hoje, em seus fundamentos. Não falámos, porém, particularmente dela. Nenhuma consideração particular importava ao nosso argumento, que era geral. provámos que é hoje legítima e necessária uma Ditadura Militar em Portugal; triplamente o provámos. Se esta, que o é, é composta como convém que seja, ou se se orienta como convém que se oriente, ou se subsistirá como convém que subsista — tudo isso é estranho à nossa demonstração. Se amanhã a Ditadura Militar cair, não cairá com ela a justificação dela. O ser necessária uma coisa não implica nem que exista, nem que, existindo, subsista; implica tão-somente que é necessária.

Em segundo lugar, o fim principal deste opúsculo está, não nele, que é só introdutório, mas nas três partes seguintes do livro de que ele é a primeira. Porém, como ele é introdutório, nele se deviam esboçar não só as matérias por cuja divisão elas são três, mas, mais particularmente, as bases dessas matérias. Da segunda secção deste emergirá a segunda parte do livro, da terceira a terceira, da quarta a quarta; a quinta, já o dissemos, não será mais que a peroração. Nessa secção segunda assentámos na importância do ideal nacional; dele, da sua natureza em Portugal, e da sua preparação aqui, tratará a segunda parte do livro. Nessa secção terceira assentámos na inviabilidade do constitucionalismo inglês; do constitucionalismo viável, que devemos criar para o substituir, tratará a terceira parte do livro. Nessa secção quarta assentámos na definição da opinião pública; de como a poderemos estabelecer e radicar em Portugal tratará a quarta parte do livro. Assim, de secção a parte de livro, tudo se liga, até numericamente.

Em terceiro lugar, tendo nós neste opúsculo esboçado as matérias dessas três partes, e definido as bases delas, em nenhuma secção, contudo, definimos as mesmas matérias, o que faremos só nas partes do livro que se lhes reportem. Não dissemos na secção segunda em que consistia um ideal nacional, nem em que deveria consistir o nosso; na segunda parte do livro, que trata da Nação Portuguesa, o faremos. Não dissemos na secção terceira em que consistia a essência do constitucionalismo inglês; na terceira parte do livro, que trata do Estado Português, o definiremos para depois assentarmos na constituição própria desse Estado. Na secção quarta, se, de facto, definimos em que consiste a opinião pública, é que na quarta parte do livro não teremos que defini-la a ela, senão às condições sociais necessárias à sua existência; da Sociedade portuguesa tratará essa quarta parte. Nem dissemos na secção segunda como se extraía um regime do ideal nacional, nem a que ideais convinha este ou aquele regime; tão-pouco dissemos, na secção quarta, qual a maneira de fazer entrar numa constituição política, ou sistema de governo, a opinião pública de uma sociedade: tudo isto fará parte, não da segunda ou da quarta, mas da terceira parte do livro. Como é ela que trata do Estado, nela se projectam as conclusões políticas corolárias da segunda, que trata da Nação, e da quarta, que trata da sociedade; pois no Estado, que é a inteligência do pais, se projectam os seus instintos, que formam a Sociedade, e os seus hábitos, que constituem a Nação.

São estes os fins, imediatos e mediatos, do presente opúsculo, que neste ponto concluímos. O que nele escrevemos (de menor monta, contudo, que o que escreveremos no próprio livro) o distingue, na amplitude e precisão dos conceitos, na lógica do desenvolvimento, e na concatenação dos propósitos, de qualquer escrito político até hoje conhecido. Nem há hoje quem, no nosso país, ou em outro, tenha alma e mente, ainda que combinando-se, para compor um opúsculo como este. Disto nos orgulhamos.

É este o Primeiro Sinal, vindo, como foi prometido, na Hora que se prometera.

O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal. — Lisboa, 1928

2-1928

Da República (1910 - 1935). Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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1ª publ.: O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal. Fernando Pessoa. Lisboa, Núcleo de Acção Nacional, 1928