Camões é Os Lusíadas.
Camões é Os Lusíadas. O lírico, em que os inferiores focam a admiração que os denota inferiores, era, como em outros épicos de sensibilidade também notável, apenas a excedência inorgânica do épico.
Não ocupa Os Lusíadas um lugar entre as primeiras epopeias do mundo; só a Ilíada, a Divina Comédia e o Paraíso Perdido ganharam essa elevação. Pertencendo, porém, à segunda ordem das epopeias, como a Jerusalém Libertada, o Orlando Furioso, a Faerie Queene — e, em certo modo, a Odisseia e a Eneida, que participam das duas ordens, — distingue-se Os Lusíadas não só destas epopeias, suas pares, senão também daquelas, suas superiores, em que é directamente uma epopeia histórica.
A vastidão impressiva de fábula, que uma época requer, buscaram-a os antigos e os grandes modernos já na lenda ou na história indirecta, já no Além. Em aquelas se fundamentam, de diverso modo, a Ilíada, a Odisseia, a Eneida, a Jerusalém de Tasso; na lenda absoluta, ou fantasia pura, o poema de Spencer e o Orlando; no Além — o Além pagão do Cristismo — a epopeia de Dante e a de Milton.
A Camões bastou a história próxima para lenda e Além. O povo, que cantou, fizera da ficção certeza, da distância colónia, da imaginação vontade. Sob os próprios olhos do épico se desenrolou o inimaginável e o impossível se conseguiu. Sua epopeia não foi mais que uma reportagem transcendente, que o assunto obrigou a nascer épica. Este Apolónio podia ter falado com seus Argonautas, este Homero ter ouvido da boca dos companheiros de seus Ulisses os terrores da Caverna do Ciclope e a notícia imediata do encantamento das sereias. Em certo modo viveu o que cantou, sendo, assim, o único épico que foi lírico ao sê-lo. Essa sua singularidade, que é uma virtude, é, como todas as virtudes, origem de vários defeitos.
Resta dizer, de Camões, que não chegou para o que foi. Grande como é, não passou do esboço de si próprio. Os sobrehomens da nossa glória constelada — o Infante e Albuquerque mais que todos — não cabem no que ele podia abarcar. A epopeia que Camões escreveu pede que aguardemos a epopeia que ele não pôde escrever. A maior coisa nele é o não ser grande bastante para os semi-deuses que celebrou.
Fotobibliografia de Fernando Pessoa. (Organização, introdução e notas de João Rui de Sousa. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988
- 107.1ª publ.: «Luiz de Camões glorificado pelos poetas da nossa terra» in Diário de Lisboa, 4-2-1924.