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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.

Sentir tudo ele todas as maneiras.

Sentir tudo excessivamente

Porque todas as coisas são, em verdade excessivas

E toda a realidade é um excesso, uma violência,

Uma alucinação extraordinariamente nítida

Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,

O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas

Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,

Quanto mais personalidades eu tiver,

Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,

Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,

Estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existência total do universo,

Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,

Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,

Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,

E fora d'EIe há só EIe, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,

Cada alma é um corredor-Universo para Deus,

Cada alma é um rio correndo por margens de Externo

Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos

Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho

E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!

Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande.

As coisas, ele braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos

Que as vê como vagos vultos nocturnos na noite negra.

Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.

Todo o Mundo com a sua forma visível do costume,

Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso.

Escuto-o. e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! Ó Terra, jardim suspenso, berço

Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!

Mãe verde e florida todos os anos recente,

Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal

Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adónis

Num rito anterior a todas as significações,

Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!

Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,

Grande voz acordando em cataratas e mares,

Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,

Em cio de vegetação e florescência rompendo

Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso

À tua própria vontade transtornadora e eterna!

Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,

Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,

Mãe caprichosa que faz vegetar e secar.

Que perturba as próprias estações e confunde

Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu   sou um hino!

Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica íntima

Volteia serpenteando ficando como um anel

Nevoento, de sensações reminiscidas e vagas,

Em torno ao teu vulto interno túrgido e fervoroso.

Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente

Meu coração a ti aberto!

Como uma espada trespassando meu ser erguido e extático,

Intersecciona com o meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,

Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre.

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito

Tendendo em todas as direcções para todos os lados do espaço,

A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une

E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim

Não passem de mim, não quebrem meu ser, não partam meu corpo,

Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira

Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,

Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.

Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,

No vasto chão supremo que não está em cima nem em baixo

Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos

Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,

Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo

De chamas explosivas buscando Deus e queimando

A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,

A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias

De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,

O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,

E nunca parece chegar ao tambor donde parte...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito

Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,

Cruzando-se em todas as direcções com outros volantes,

Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço

Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão

Todos os movimentos que compõem o universo,

A fúria minuciosa e (...) dos átomos

A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,

A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

E a chuva como pedras atiradas de catapultas

De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio

De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.

Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia. sacode,

Freme, treme, espuma, venta, viola, explode.

Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,

Se com todo o meu corpo todo o universo e a vida,

Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes ,

Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos

Sobrevive-me em minha vida em todas as direcções!

s.d.

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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1ª versão: Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.