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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Em matéria de assuntos sobre que se possam ter opiniões,

Pol[itical] Sufr[age]

Em matéria de assuntos sobre que se possam ter opiniões, há (1) assuntos sobre os quais há ciência, (2) assuntos sobre os quais não há ciência mas há experiência, (3) assuntos sobre os quais não há ciência nem experiência. Sobre os primeiros, é evidente que pode haver opiniões técnicas, e que essas, em princípio, deverão prevalecer sobre as dos que não são técnicos ou peritos; mas aqui mesmo há que distinguir entre os assuntos sobre que há ciência certa — como, por exemplo, o coeficiente de dilatação dos metais —, e aqueles sobre que há ciência teórica, como, por exemplo, a constituição da matéria. E é de notar que muitas inovações teóricas na ciência, assim como muitas invenções na aplicação dela, têm sido recebidas com muito mais hostilidade, ignorância real e aversão pelos peritos do que pelos leigos na matéria. É que o perito é até certo ponto escravo do que sabe, que é o que sabe até ali; enquista nisso, e é mais rudemente inimigo de qualquer inovação do que o leigo, visto que essa inovação perturba e agride as suas ideias preconcebidas, ao passo que o leigo ou não tem ideias preconcebidas, por não ter nenhumas, que se perturbem, ou tem ideias vagas, que não têm força para o fanatizar.

Nos assuntos em que não há ciência mas experiência, o caso é já mais difícil, pois que há três tipos de experiência — a própria, a próxima e a remota. Explicarei isto melhor, e por exemplos. A opinião de um chefe político sobre um sistema político que ele próprio aplicou ou tentou aplicar, é experiência própria. A opinião desse chefe político sobre um sistema político que se aplicou já no seu país ou no seu tempo, é experiência translata, mas próxima. A opinião do mesmo chefe político sobre um sistema político que se aplicou na Grécia Antiga ou na China é experiência remota, derivada, não de observações como a experiência próxima, mas de leituras ou relatos. E aqui o valor das opiniões é muito mais incerto; não havendo ciência, depende tudo muito mais da pessoa do que da matéria. (...)

Nos assuntos em que não há ciência nem experiência todas as opiniões são válidas, porque ninguém tem base para elas. Não vale mais, pois, nessa matéria a opinião de um homem culto que a de um ignorante; o culto poderá expor melhor o que pensa, poderá dar em argumentos o que o ignorante dará por palpites ou por afirmações. Como, porém, nem ciência há nem experiência, nada obsta a que o palpite do ignorante seja mais justo que a argumentação do sábio, visto que nessa matéria não é ele sábio. A história fornece sobrados exemplos de casos em que a massa popular, por um instinto irracional, “pensou” melhor, quanto a certa coisa política, do que os estadistas ou os reis ou conselheiros deles.

(O que deu certo numa terra pode dar errado noutra, e vice-versa...)

Não pesa o argumento de que um ignorante não pode escolher um deputado ou governante, porque todos nós que não somos advogados assim escolhemos os nossos advogados, todos que não somos médicos os nossos médicos, todos que não somos arquitectos os nossos arquitectos. Escolhemos como? Por uma soma de vários factores a que poderemos dar o nome colectivo de “sugestão”.

O que é preciso é fazer com que seja possível o eleitor, em democracia, escolher o eleito por sugestão, e não ser-lhe este imposto à força ou por fraude. Não é preciso mais nada. E assim se fará a verdadeira experiência da democracia — experiência essa que até aqui se não fez, sendo por isso que se não pode dizer que a democracia falhou, senão que falharam várias formas Imperfeitas dela, ou, melhor dizendo, várias formas da ausência ou da perversão dela.

1919

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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