Prefácio de Ricardo Reis ao seu livro ODES:
Prefácio de Ricardo Reis ao seu livro ODES:
O prefácio, que pus à obra de meu mestre Alberto Caeiro, dando-me azo a que consignasse os princípios fundamentais a que visa o esforço, a que me junto, da reconstrução pagã, dispensa-me, e isso me apraz, da operosa tarefa de pôr a estas Odes um introito explicativo.
Naquele prefácio não está, porém, dito a que fins visa essa reconstrução; se busca, deveras, trazer outra vez ao mundo cristianizado o paganismo dos gregos e dos romanos, se busca outro fim qualquer, de âmbito mais humilde.
Parecendo que esta dupla hipótese contém em si a solução, não é assim. Esse movimento de reconstrução pagã apareceu, sem que os próprios em cujo espírito se revelou saibam a que fim do Destino quer que ele vise. Por isso, para nós dois em quem o fenómeno se deu, ele não tem sentido nenhum. O que sentimos verdade dentro de nós, traduzimos para a palavra, escrevendo os nossos versos sem olhar aquilo a que se destinam.
Uma reconstrução real do paganismo parece tarefa estulta em um mundo que de todo, até à medula dos seus ossos, se cristianizou e ruiu.
Depunhamo-los como oferendas, tábuas votivas, no altar dos Deuses, gratos simplesmente porque eles nos hajam livrado, e posto a salvamento, daquele naufrágio universal que é o cristismo.
Citação Horácio
Chamemos à nossa obra de «reconstrução pagã» porque ela o é, sem que o queiramos. Mas não façamos dela uma política ou uma força. Se os Deuses nos fizeram a graça de nos revelar a sua verdade antiga, contentemos em manter-lhes doméstico o culto impoluto.
Se a oferenda que na ara doméstica lhes fazemos for bela, basta que eles, na sua soberana ciência, a aceitem por boa. Nesse acto de culto, piamente realizado, cesse todo o intuito consciente da nossa obra religiosa.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
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