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Fernando Pessoa

COMO ORGANIZAR PORTUGAL

COMO ORGANIZAR PORTUGAL

Quando a guerra findou — como se a guerra alguma vez findasse, ou houvesse neste mundo senão guerra! —, quando, enfim, esta guerra de há pouco findou, passou a ser assunto de primeiro plano aquilo, já bastante discutido, a que mais vulgarmente se chamou “os problemas da reconstrução”. A frase é inglesa, e, como participa da nebulosidade mental que caracteriza os ingleses, susceptível de ser mal interpretada. Se o termo diz respeito ao mero restabelecimento das vias normais da vida pacífica, tem cabimento etimológico; se diz respeito à reconstituição das indústrias estagnadas, à reedificação das cidades destruídas, tem cabimento também. A frase porém tem um sentido vulgar arbitrariamente mais lato: quando se diz “reconstruir”, quer, em geral, dizer-se simplesmente “organizar”. E esta ideia de organização não tem origem simplesmente na necessidade de preencher lacunas, que a guerra abrisse, ou de reparar estragos, que os exércitos fizessem. Tem uma, de certo modo, mais vergonhosa origem.

Durante quatro anos suportaram os aliados embates sobre embates dos Alemães. Aguentaram-os conforme os Deuses foram servidos, ora bem, ora mal, ora confiando, ora descrendo, até que o mais velho dos Deuses, o Tempo, lhes concedeu a vitória. E durante esses quatro anos, e através da dura experiência que eles foram, aprenderam — com que proveito, ainda se não sabe — pelo menos uma coisa. Repararam que a força da Alemanha provinha, não da valentia notável dos componentes individuais dos seus exércitos, não da perícia especial dos seus chefes militares, mas de ser na guerra o que era na paz, e na disciplina particular da vida guerreira o que era no geral de toda a sua vida — uma nação plenamente organizada, coerindo dinamicamente em virtude de uma aplicação inteligente e estudada dos princípios de organização. A inveja é mãe do estímulo, como a curiosidade o é da ciência; da inveja da organização alemã nasceu o falar-se tanto em organizar tanta coisa.

Se é fácil, porém, falar em organizar, menos fácil é, ao que parece, organizar deveras, ou, pelo menos indicar como se organize. Nem se pode conceber época mais inapta para tomar sobre si o encargo intelectual que a palavra “organização” comporta. Os homens do nosso tempo, destituídos por completo do senso das realidades, extraviados por hipotéticos “direitos”, “justiças” e “liberdades” da noção científica das coisas, não logram, nem mesmo em teoria, visionar a construção da prática. Um século, ou mais, de “princípios de 89”, um século, ou mais, de “liberdade, igualdade, fraternidade” tornou o geral dos europeus, salvo os alemães, obtuso para aquelas noções concretas, com as quais seguramente se constrói o futuro.

E um estudo, como este, da organização, devia, para ser completo, começar pela eliminação crítica de quanto lixo a loucura dos séculos mortos, os idealismos fustes do século passado deixaram nas almas; por uma análise — fácil, afinal — que mostrasse como desde a Revolução Francesa o espírito humano, no que político, retrogradou, e como as ideias de liberdade, de igualdade e de fraternidade, como as têm entendido desde Babeuf aos bolchevistas, não são mais que restos laicos da ideologia cristã, drogas de reclame para uso das plebes por educar.

Isto, porém, estorvaria o intuito directo deste estudo, que é o de determinar em que princípios deve ficar assente qualquer teoria da organização social e, em especial, da organização social portuguesa.

Suponhamos que queremos organizar a sociedade portuguesa; como a organizaremos?

É evidente que o problema da organização se divide em três partes, uma das quais compete ao teórico, e as outras duas ao prático. Temos, primeiro, a determinação do plano ou norma, segundo o qual se vai organizar; temos, depois, a colocação, nos lugares que lhes competem, dos homens competentes que hão-de efectivar, na prática, essa organização; temos, por último, a coordenação dinâmica dos esforços desses homens, a maneira especial de pôr a organização em marcha. A primeira parte é de pura teoria, a segunda e a terceira pertencem já à prática. Para a primeira não há senão regras; para a segunda e a terceira não há outra regra senão a realidade, nem outra norma, na segunda parte, senão a intuição na escolha dos homens, e, na terceira, o espírito prático de coordenação de esforços.

Não nos interessa — escusado é dizê-lo — senão aquela parte que é teoria, e é dessa que vamos tratar. As outras duas partes, que competem aos práticos, não nos interessam porque não podem ser objecto de estudo, nem para elas há regras que se possam dar. Antes, porém, de entrarmos na teoria, propriamente dita, vejamos bem de que espécie de teoria é que se trata.

E que há duas espécies de teorias — a teoria puramente científica e interpretativa, e a teoria preliminar da acção. A cada uma delas corresponde um modo determinado de análise, uma atitude especial do espírito. A análise de um problema para o compreender não é igual à análise do mesmo problema para aplicar à prática a sua solução. Compreender envolve esmiuçar o mais possível; resolver envolve simplificar: há, portanto, oposição entre as atitudes do espírito em um e outro caso. Quem estuda um problema para o compreender não tem diante do seu espírito senão esse problema; quem estuda um problema para o resolver e aplicar tem diante do seu espírito duas coisas — o problema e a realidade a que há-de ser aplicada a sua solução. No primeiro caso, a atenção tem que concentrar-se apenas sobre o problema; no segundo, tem que estudar qual a média entre o problema e a realidade. Não é só que o escrúpulo normalmente excessivo da compreensão entibia, de ordinário, a vontade; isso é com o teorista e não com a teoria, e só lhe pode fazer realmente mal se ele pretende ser, além de planeador, o chefe prático da execução do seu plano. É que toda a realização é a diagonal do paralelogramo de forças, cujos lados são a ideia a aplicar e a realidade a que ela se aplica.

Quanto mais concretamente plausível seja a teoria que se tenta aplicar, mais facilmente será aplicada; ou, em outras palavras, e para me servir da imagem justa que empreguei, quanto mais pequeno for o ângulo entre a linha-força da teoria e a linha-força da realidade, menor será o desvio de ambas, da diagonal da realização.

Esta é a parte que compete à teoria. A intensidade da força aplicada, que graficamente se representa pelo comprimento da linha, pertence já à prática. Dela não trataremos nem podemos tratar.

Aplique-se, agora, esta doutrina. Tratando de organizar, tratamos de organizar qualquer coisa; determinemos primeiro que coisa é essa, para que, desde o princípio, possamos limitar a nossa investigação a um ponto concreto. Não se trata — é bem de ver — de uma teoria da organização abstracta, da organização atitude mental que tanto pode ser aplicada a um poema como a um estado, a um tratado de filosofia como a uma empresa de comércio. O que procuramos organizar é a sociedade portuguesa; é sobre esse ponto, e sobre esse apenas, que temos que fazer incidir a nossa investigação.

O estudo desse ponto, porém, desdobra-se em três partes. Para a análise, a sociedade portuguesa é, primeiro, sociedade, e depois sociedade portuguesa; temos, portanto, que investigar, primeiro, em que princípios deve assentar a organização de qual-

quer sociedade, e, depois, por que aplicação especial desses princípios deve ser organizada a sociedade portuguesa. São estas as duas primeiras partes, mas como nelas apenas se assentam princípios, uma terceira parte, derivada e complementar daquelas, será o estudo dos processos a adoptar para realizar a organização, cujos princípios estabeleçam.

Na investigação dos princípios em que deve assentar a organização de qualquer sociedade tropeçamos, logo de começo, num obstáculo — a ausência de ponto de apoio científico para tal determinação.

Tomando a imagem da química, podemos dizer que a ciência chamada sociologia está ainda no seu período alquímico. De forte e seguro, em matéria sociológica ou política, pouco temos

— nós, humanidade em geral—a não ser a Política de Aristóteles, fruto de toda a experiência política da Grécia antiga, e O Príncipe, de Machiavelli, fruto de toda a experiência política da Renascença. Um como outro, habitantes de pequenos estados, onde as engrenagens da política estavam patentes, podiam colher ensinamentos que São vedados aos súbditos de grandes nações, onde a profusão de elementos acidentais e heterogéneos obscurece as grandes linhas, as linhas simples, da realidade substancial. Desde a Revolução Francesa, sobretudo, se perdeu por completo o senso das realidades sociais, em proveito de teorias abstractas, de sentimentalismos vagos, de imperialismos místicos e mistos. E de então para cá, na era dos grandes estados e do internacionalismo crescente, que a progressiva facilidade de comunicações e de relações instaurou, ficou sendo completa a obnubilação do senso político. Foi em meios como estes que nasceram as modernas teorias sociológicas. Não admira que a nada cheguem e de nada sirvam, e que se possa dizer que estamos ante elas como os velhos diplomatas recomendavam que se estivesse, para aprender, ante o célebre governo da Sicília: esse governo era uma perfeita lição de administração, pois bastava ver o que ele fazia e fazer o contrário, para se acertar.

Privados, assim, de apoio científico — pois a própria Política de Aristóteles é mais uma colecção de apontamentos admiráveis do que uma obra cientificamente coerente — não temos remédio senão entrar sozinhos, e sem mais recursos que a própria lógica, na investigação do problema. Não vamos, porém, investigar quais as leis fundamentais e eternas, pelas quais as sociedades se regem; tal empresa seria, simplesmente, a de escrever um tratado de sociologia. O nosso fim, como já se explicou, é apenas ver o problema em relação à prática; basta, portanto, no caso presente, que descubramos qual a lei, o princípio que serve de esteio às sociedades; se for na verdade fundamental, tal qual é nos servirá para o nosso fim prático.

Limitemos, ainda mais, o problema. escusamos de procurar o princípio fundamental de todas as espécies de sociedades; basta que procuremos o que serve de base às sociedades civilizadas ou progressivas. Mais do que isto não é preciso, pois a uma sociedade civilizada e progressiva (embora atrasada e perturbada) se hão-de aplicar, por fim, as nossas conclusões. Vemo-nos, assim, livres do que Summer Maine disse ser um problema capital da sociologia — qual a distinção fundamental entre as sociedades susceptíveis e as insusceptíveis de progressos?

Ora, se considerarmos uma sociedade progressiva, a própria designação está dizendo que o seu princípio fundamental se liga com o progresso. Escusamos de definir progresso; e assim nos vemos livres de um outro dos pesadelos da sociologia. Para o nosso caso, basta determinar a dinâmica do progresso, sem examinar o conteúdo lógico do termo.

O progresso, seja o que for, e quer se considere bom quer mau, é, com certeza, uma alteração, e uma alteração envolve o abandono de certos hábitos, de certos costumes, de certas normas e atitudes que, por serem velhas, se tornaram queridas, e, por serem usuais, se tornaram necessárias. A alteração chamada progresso incide, portanto, quando não sobre os instintos, pelos menos sobre os hábitos dos indivíduos, ou da maioria dos indivíduos, que compõem uma sociedade. Ora o homem, como todos os animais, é essencialmente uma criatura de instintos e de hábitos; a ciência psicológica terá descoberto pouco, mas, isso, pelo menos, descobriu. A essência do progresso é, portanto, uma coisa que choca os homens no que têm de mais humano; a atitude instintiva da maioria dos homens perante o progresso é, portanto, a resistência a ele. a resistência é grande, patente e forte, se a alteração que se tenta fazer é notável e fere ou muitos hábitos ou hábitos muito arreigados; de ordinário, e na normalidade do progresso, como este é lento, a resistência é fraca, e opera como freio e não como obstáculo.

Temos, pois, que, nas sociedades progressivas, o que há de fundamental se resume em duas forças — uma que tende a fazer progredir, outra que tende a resistir ao progresso.

Ora a ciência constata que tudo quanto vive, vive em virtude do equilíbrio de duas forças — uma força de integração e uma força de desintegração. A vitalidade de qualquer ser está na razão directa do equilíbrio destas duas forças; com elas essa vitalidade diminui.

A sociedade, como é composta de entes vivos, é, evidentemente, regida por esta mesma lei; e isto embora não se queira ter a sociedade por um organismo. Basta que seja composta de entes vivos para que lhe seja aplicada a lei fundamental da vida. Nós constatámos, nas sociedades progressivas, a existência, precisamente, de duas forças. Aplicando a este caso especial aquela lei geral, podemos já concluir que no equilíbrio das forças de progresso e de resistência ao progresso reside a vitalidade de uma nação.

É quanto precisávamos saber de fundamental. Resta agora que formemos uma ideia clara dos fenómenos que se dão em qualquer sociedade civilizada quando se dá uma ruptura de equilíbrio pelo predomínio de uma, ou de outra, daquelas duas forças.

Quando a ruptura de equilíbrio se dá pelo predomínio excessivo da força conservadora, dá-se uma estagnação, um entorpecimento, e o grau dessa estagnação depende do grau do predomínio da força conservadora. Por atrasada, porém, que seja essa sociedade progressiva, algumas classes haverá, visto que ela é progressiva, que não estejam dispostas a aceitar essa estagnação. Essas classes buscarão progredir, institiva ou conscientemente, e esse seu esforço produzirá, tarde ou cedo, dois resultados funestos. O primeiro é que perderão o contacto com as classes estagnadas do país, dando-se assim uma quebra de coesão social, e, portanto, uma baixa de vitalidade, por sua vez, atingindo-os, ou aos seus descendentes, diminui-lhes tudo quanto trabalha para o progresso — o poder de pensar originalmente, a imaginação construtiva, a vontade directora. O segundo é que, perdido o contacto com as outras classes do país, os progressivos são fatalmente levados a viver mentalmente com o estrangeiro, e assim se desnacionalizam, abrindo ainda mais o abismo entre eles e os outros, que, na sua estagnação, permanecem agarrados ao passado e às tradições nacionais.E, quando a baixa de vitalidade nacional por fim atinge as classes progressivas, essa vida com o estrangeiro, perdidas já as qualidades que originam e orientam, transforma-se em servilismo desnacionalizado, em mimetismo idiota das coisas que vêm de fora.

Quando a ruptura de equilíbrio se dá pela predominância da corrente progressiva, acontece que as outras classes, não podendo acompanhar esse progresso (se o pudessem acompanhar não se rompia o equilíbrio) e não se adaptando portanto a ele, passam a reagir violentamente, e o país cai na anarquia. como do mesmo modo, que no caso contrário, um abismo se abre entre as duas partes do país, temos a mesma perda de coesão e, portanto, de vitalidade nacional. E como uma dessas partes, não coerindo com a outra, passa a viver mentalmente do estrangeiro, temos aqui também, mas em maior escala, o fenómeno de desnacionalização, que no caso oposto também se notou.

Há, em dois pontos, semelhança entre os resultados dos desequilíbrios; em ambos os casos perda de coesão e de vitalidade nacional, em ambos os casos desnacionalização de parte do país. A explicação é simples. É que esses fenómenos são os que caracterizam todas as decadências, e as decadências são, por igual, a estagnação em que uma sociedade superconservadora se enterra, e a anarquia em que cai uma sociedade superprogressiva.

No intuito, cuja razão já expliquei, de simplificar o problema, tenho estudado apenas os seus traços fundamentais. Isto não quer dizer que ele não seja, quando estudado com um fim puramente científico, muito mais complexo e que não haja, nos períodos de estagnação, fenómenos de anarquia, nem nos de anarquia, fenómenos de estagnação. Esses fenómenos, porém, são, em cada um dos casos, secundários; vinco apenas, em cada caso, o fenómeno fundamental e definidor.

Isto posto, passarei desta análise geral ao estudo particular do problema português.

Encarando o problema português com o mesmo critério, e, portanto, com o mesmo propósito de simplificação, constata-se, sem grande trabalho, que na nossa vida nacional se deu uma grande ruptura de equilíbrio, e, muito depois, duas outras perturbações, de carácter secundário, e subsidiárias daquela.

Onde quer que se coloque o início da nossa decadência — da decadência resultante do formidável esforço com que realizamos as descobertas e as conquistas —, aí se deve colocar o início da grande ruptura de equilíbrio que se deu na vida nacional. Com a dispersão por todo o mundo e a morte em tantos combates, precisamente daqueles elementos que criavam o nosso progresso, o nosso pequeno povo foi pouco a pouco ficando reduzido aos elementos apegados ao solo, aos que a aventura não tentava, a quantos representavam as forças que, numa sociedade, instintivamente reagem contra todo o avanço. E um dos casos mais visíveis da criação de uma predominância das forças conservadoras. Com isto, visto à luz do que se explicou, queda revelado o porquê da nossa decadência.

Todos os fenómenos se seguiram, que na devida altura detalhei, como o seguimento fatal da supertradicionalização. O que restava de progressivo desnacionalizou-se depressa. Cavou-se um abismo entre esses e a maioria do país. Em uns e outros, o nível intelectual, o nível cultural e o nível da vontade prática e útil foi baixando. Um ou outro homem de maior destaque surgia e desaparecia e a sua obra, quando não morria com ele, morria pouco depois, pois não havia coesão social, por onde se propagasse, nem interesse intelectual, por onde, ao menos, se mantivesse. A Restauração, livrando-nos da maior vergonha externa, não nos livrou, nem trouxe quem nos livrasse, da vergonha interna paralela. Ficámos independentes como país e dependentes como indivíduos. Tornámos a ser portugueses de nacionalidade, mas nunca mais tornamos a ser portugueses de mentalidade. Nem portugueses, nem nada.

Só da obra do Marquês de Pombal alguma coisa ficou, e isso não pela energia do homem, nem mesmo pelas suas grandes qualidades de organizador, mas pelo ponto de apoio que deu a essa obra — o desenvolvimento industrial e comercial do país. No fim deste estudo se verá a que vem esta observação. O que Pombal criou, porém, sumiu-se com as invasões francesas. Depois delas a nossa desnacionalização teve o seu período abísmico: só o nome da nossa independência nos ficou. Pode, à primeira vista, parecer que a implantação do constitucionalismo representa uma reacção do espírito progressivo contra o peso do tradicionalismo. O constitucionalismo, porém, foi uma coisa muito diferente: foi um simples fenómeno de desnacionalização. Longe de suspender a nossa decadência, vincou bem que estávamos em decadência. Uma reacção do espírito progressivo procuraria reformar a nossa antiga monarquia, procuraria estimular energias, modificar o nosso modo de não ser económico. Reacção do espírito progressivo foi a obra de Pombal. O constitucionalismo, porém, não fez senão trazer-nos um regime político inteiramente estranho a toda a nossa vida nacional, inteiramente inadaptável a todas as condições, materiais como culturais, da nossa verdadeira índole. Destruiu e espoliou inútil e estupidamente, tendo em mira apenas a nossa impossível adaptação a um regime que nenhum sentimento português queria, e que a toda a inteligência verdadeiramente portuguesa instintivamente repugnava. O resultado foi aquela política que todos nós conhecemos, e que em oitenta anos o afundou. Foi isto o constitucionalismo — um 1640 feito por Miguel de Vasconcelos.

O único bem que o constitucionalismo trouxe proveio de um dos seus maiores males. As grandes convulsões sociais, as revoluções, as guerras civis, embora politicamente nada produzam, têm ao menos a vantagem de sacudir energias letárgicas; e é a este género de mal do constitucionalismo que devemos a eclosão, no século passado, de individualidades de destaque relativo, se bem que inegável. De obra política, porém, não deixou senão um abismo maior entre as classes sociais e uma desnacionalização mais adiantada e corrupta.

O que se diz do constitucionalismo pode dizer-se, sem perigo de errar, da implantação da República. Nenhuma reacção do espírito progressivo a instaurou; foi um fenómeno, ainda mais adiantado, da nossa decadência, da nossa desnacionalização.

Se o regime constitucional pouquíssimos pontos de contacto tem com quanto em nós seja português, a república francesa que implantaram em Portugal não tem, então nenhuns. Uma reacção verdadeira do espírito progressivo, se achasse indispensável acabar com o sistema constitucional, só o teria feito para reconstruir o nosso antigo sistema de regime, ainda que o fizesse (conceda-se) sob uma forma republicana.

Dizer da República que a sua vinda foi motivada pelos erros e crimes do constitucionalismo vale o mesmo que se se dissesse que a vinda do constitucionalismo fora motivada pelos erros e crimes da velha monarquia; em ambos os casos a justificação é incompleta, pois esses erros e esses crimes podem ser razão para se deitar abaixo o que, com efeito, se derrubou, mas não têm nada que ver com o ter-se posto lá o que, nos dois casos, lá se pôs.

Eis, pois, a nossa situação: fundamentalmente, uma ruptura de equilíbrio social por predominância dos elementos retrógrados e improgressivos; secundariamente, uma crescente desnacionalização, pois que a República levou o vírus do estrangeirismo a um maior número de classes do que a monarquia constitucional.

As condições do problema estão postas. Vamos, agora, à sua solução.

É evidente que a organização reconstrutiva a dar a uma sociedade onde se deu uma ruptura de equilíbrio varia consoante se trate de uma ruptura de equilíbrio por superprogressivismo ou por supertradicionalização. A supertradicionalização é um mal mais fundo, mas menos grave, que o excesso de espírito progressivo. O ponto é intuitivo: é mais fácil fazer ir para a frente mais depressa quem para lá vai indo muito devagar, do que fazer voltar atrás quem vá indo para a frente muito depressa. A base mental da supertradicionalização é a falta de educação e de vitalidade do espírito, no geral do povo; e, nas classes desnacionalizadas, uma educação escassa e viciada. A base mental do desequilíbrio oposto, é, em todas as classes, uma educação viciada, de onde deriva a acção excessiva de umas e a reacção violenta de outras. Ora o resultado psíquico de uma falta de educação é a ignorância, a estupidez, a falta de interesse, a carência de atenção e de vontade; o remédio a empregar deve atingir, portanto, directamente, as qualidades intelectuais, deve ser de ordem a produzir uma transformação mental da maioria do povo, de todo o povo mesmo, pois, produzida que seja na maioria apática, esta ou vitaliza ou esmaga a minoria desnacionalizada. Na educação viciada o caso é diferente, porque a educação viciada atinge primordialmente os sentimentos, e dá marcantemente a perversão do carácter; aqui, como é de ver, o remédio deve incidir directamente sobre os sentimentos, sobre as qualidades afectivas. Na supertradicionalização, a decadência revela-se directamente pela estagnação e o atraso, e apenas secundariamente pela descoesão social e pelo estrangeirismo; o remédio, portanto, sobre dever ser uma transformador mental, deve ser directamente adaptado a quebrar o atraso da nação.

No superprogressivismo, a decadência revela-se directamente pela anarquia e a desnacionalização; o remédio, nesse caso, sobre dever ser um transformador afectivo, deve tender directamente a unir as classes desunidas e fortalecer o patriotismo de todas.

No caso do superprogressivismo, o remédio é já patente. Há só um processo de transformar afectivamente uma nação inteira, aproximando, ao mesmo tempo, as classes desunidas e fortalecendo o patriotismo. Esse remédio é a guerra — uma guerra qualquer, preferivelmente justa, em que violentamente se lance a nação. É, sem dúvida, o processo germânico, a doutrina germânica. Mas isso é para mim uma garantia de que este raciocínio seguiu certo. Sempre que, em matéria de organização uma teoria é bem pensada, leva-nos a uma conclusão que os alemães já praticaram.

O caso do remédio para o excesso de espírito progressivo não é, porém, o que nos interessa.

No caso do superconservantismo, o remédio a aplicar tem de ser um transformador mental, criador de interesse e de energia, e, ao mesmo tempo, uma cura para o atraso da nação. Ora há só um género de transformação, aplicável a uma nação inteira, e pela qual se lhe avive o espírito e se lhe desperte interesse e vontade: é uma transformação profissional. E, como se trata de um país atrasado, e todos os países atrasados são predominantemente agrícolas, é evidente que a única transformação profissional a fazer, e que preenche todas as condições exigidas, é a industrialização sistemática do país.

Educação simultaneamente da inteligência e da vontade, transformador ao mesmo tempo da mentalidade geral e do atraso material do país, o industrialismo sistemático, sistematicamente aplicado, é o remédio para as decadências de atraso, é, portanto, o remédio para o mal de Portugal. E se, de há muito, esse remédio nos tem sido necessário, na conjuntura presente, em que, pelas condições da indústria moderna, pode ser rápido e, pelas condições gerais da civilização, tem que ser urgente, passa de ser uma necessidade para ser a primeira de todas as necessidades. Detalhar esse plano fundamental, assentar as suas bases práticas, estabelecer o modo de lhe dar realização — nenhuma destas coisas é objecto deste estudo ou assunto da minha competência. O que me cabia fazer está feito.

1919

Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.

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1ª publ. in Acção, nº1. Lisboa: 1-5-1919