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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

FAUSTO: O casamento

                [FAUSTO]:

                    O casamento

A separação  (...)    em si

Nada valem. Perante o pensamento

São fórmulas vazias. Mas o homem,

Na sua vida humana e colectiva,

Não vive em metafísica. O real

Puerilidade tem, contradições

Necessárias a ele. O pensamento

Não, a lei da vida. Tu não vês

Que o mais real que há, base de tudo,

O movimento, uma contradição

Suprema é e [...]. Tu não leste

De que formas de elixir (...)

O próprio ser, a própria vida são

Qual fórmulas perante o pensamento?

Pertence aos ignorantes e aos doidos

Desfazer convenções...

                [ANTÓNIO?]

                        Sim, mas os génios?

                FAUSTO:

Esses, porque são doidos. Ignorando

As leves e ligeiras convenções

Que excessos do útil e do usual

As fórmulas são às necessidades

Da vida do homem. Só a decadência

Generaliza e se despreza.

Mas eu, se frio estou e confrangido

Até ao seio d'alma, não perdi

O sentimento de dever perante

Os homens pr’a que busque vãos e inúteis

Impossíveis progressos, semi-doido

Semi-inconsciente da loucura.

E o raciocínio em mim não dorme nunca

E esse obriga-me a desdenhar as fracas,

Vazias teorias que pretendem

Por sentimentos a verdade obter

E por razões vãs de sentimento nadas.

Nojo, sim tudo, filho! nojo, nojo!

O homem vive em inconsciência, nasce

E vive e morre inconscientemente

Sem sequer do mistério aperceber-se,

Mais perto que palavras, do que o cerca.

Pensar, sentir, amar — ah, se tu visses

Como eu o fundo da inconsciência vã

Em que tudo se move. Se pudesses

Compreender...

                        Bem sei, António,

Mal transpuseste o limiar da porta

Já meus (...) argumentos desdenhaste.

Ou por doido me tens, ou por muito

Escravo do passado. Eu! Mas assim é:

Consciente só... (ia a dizer eu) sim,

Conscientes poucos.

Havendo isto, há a vida; não a havendo

Mais vida já não há. E assim de todas

As vidas existimos — da do mundo

À da sociedade humana, António.

                                Impulsos jovens

Que roubam a capa ao pensamento

E parecem ao longe raciocínios,

Mas a quem o pensamento não conhece.

Eu que levei a vida a conhecê-lo

Em tão débeis palavras não me engano.

É [...] a ilustração,

António, mas é certa. A humanidade

E as suas mágoas, dores está acima

De nossa frágil preocupação

De novidade e (...) progresso.

Eu amo a humanidade — antes amei-a

(Que eu já não amo nada) se inda sinto

Como que amor por ela é por lembrança

Ou instinto daquilo que senti.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

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