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Fernando Pessoa

A OPINIÃO PÚBLICA [b]

A OPINIÃO PÚBLICA [b]

Demonstrado, assim, que a Democracia moderna é radicalmente anti-social, pois que um dos seus princípios fundamentais, o do sufrágio político, é substancialmente antagónico, por “intelectual”, ao não intelectualismo que caracteriza as manifestações

do instintivismo social e da “opinião pública”, manifestação dele e base reconhecida de toda a vida política, resta, neste capítulo, que provemos que a Democracia moderna é por igual antipopular e antipatriótica. A demonstração far-se-á contrapondo o segundo dos princípios “democráticos”, o liberalismo, ao segundo dos princípios do instintivismo social, a conservatividade; e contrapondo o terceiro dos princípios “democráticos”, o pacifismo, ao terceiro dos princípios do instintivismo social, que é o antagonismo. Assim se provará, no primeiro caso, o carácter antipopular da Democracia moderna, e, no segundo caso, o seu carácter antipatriótico.

Ao comparar os princípios “liberais”, ou liberalistas, com a essência conservativa do instintivismo social, temos que, logo de início, excluir uma possibilidade de erro ou de confusão, que é a que resultaria de se confundir o sentido de conservatividade com a significação de conservantismo. Quando tivermos que considerar a opinião pública como fenómeno sempre tradicionalista (o que já provámos que era), será ocasião de encarar o problema do conservantismo, propriamente dito, isto é, da atitude usualmente designada como conservadora. O que nos preocupa agora, na análise comparativa do liberalismo da Democracia moderna e da conservatividade do instintivismo social, é a definição diferencial dessa conservatividade. E, como o nome sugere conservantismo por semelhança etimológica, cumpre, antes de mais nada, distinguir:

Quando, no anterior artigo, determinámos quais os característicos fundamentais do instinto, e, portanto, da opinião pública (que havíamos provado ser uma síntese de instintos, e não de ideias), notámos que um desses característicos do instinto era o não se adaptar (adaptando, antes, as coisas a si), sendo nisso o contrário da inteligência, essencialmente adaptativa. A essa peculiaridade do instinto chamámos, porventura mal, conservatividade. Tal, porém, é o sentido que, adentro deste estudo, o termo comporta. A conservatividade entende-se, portanto, aqui como sendo aquela peculiaridade do instinto, pela qual ele tende a conservar-se tal qual é, não originando nem criando, e procurando, ante qualquer fenómeno externo, adaptá-lo a si.

Resulta de tal peculiaridade que, se há tendência fundamental do instinto, é a de fazer com que todas as coisas, com as quais entre em contacto, se convertam na sua própria substância — substância dele, instinto. Ora esta atitude dá como resultado nos indivíduos componentes da camada propriamente instintiva, isto é, da quase totalidade da nação, o egoísmo como fenómeno distintivo. O que na generalidade do instinto se caracteriza por a tendência não adaptativa, caracteriza-se na particularização individual do instinto por a tendência centrípeta. Ora, como são as camadas populares (assim vimos) as que concentram em si, com menos desvio e mais segura detenção, o instintivismo social, como são elas que são sãmente depositárias do instinto de sociedade, segue que estas camadas são por igual depositárias do egoísmo como determinação individual desse fenómeno geral. E segue imediatamente que para uma teoria ser antipopular, para ser feita contra o povo, contra os seus instintos e contra a sua alma, basta que essa teoria seja antiegoística. Basta que se lance em uma sociedade uma teoria, pela qual se ataque o egoísmo, para se lançar uma teoria, pela qual se ataca o povo. Só nas épocas de decadência e de esgotamento social, quando o valor humano do indivíduo se abate e o seu dinamismo social afrouxa, pode uma doutrina altruísta criar raízes na alma popular.

Tal o caso das doutrinas liberais na nossa época incerta e decadente. Tal o caso da invasão negra do cristismo, com a sua morbidez e a sua indisciplina, na decadência do império romano, no crepúsculo dos velhos deuses pagãos, por quem vieram ao mundo as virtudes cívicas e a harmonia e a disciplina das almas.

Há, evidentemente, uma excepção. Esse egoísmo nasce da espontânea aplicação particular do instintivismo social; mas esse instintivismo social tem por base (como já vimos) o sentimento patriótico. Ora onde tudo é instinto — e assim é nos depositários essenciais do instintivismo social —, só se contraria ou equilibra a acção de um instinto pela acção de um outro instinto, igualmente forte. O egoísmo individual e o sentimento patriótico têm a mesma base instintiva; o indivíduo normal e são, portanto, só deixa de ser egoísta pela solicitação do sentimento patriótico. Quando não há razão patriótica em jogo, o homem são é absolutamente egoísta; e a objecção, que imediatamente ocorre, do sentimento de família, cai em falso, pois que o sentimento de família, é, no homem são, apenas um prolongamento complicado do instinto sexual. Isto no homem são dizemos: o que acontece no homem doente não nos interessa saber.

Não custa a ver que o princípio liberalista, ou igualitário, inteiramente se contrapõe ao egoísmo são dos homens. Busca o liberalismo a abolição de privilégios, a abolição de diferenças sociais entre os homens; e leva isto mais ou menos longe — teoricamente, consoante a ousadia ou indisciplina mental dos teorizadores; praticamente, segundo o grau de perturbação social que se atravesse.

A abolição de privilégios parece, a princípio, que deve ser concordante com o egoísmo natural dos homens, pois que a abolição do privilégio de determinado homem pode favorecer o egoísmo de mil homens, que não tenham tal privilégio; e, se há aqui egoísmo ferido, é por certo apenas o do desprivilegiado. Tal benefício, porém, é aparente. Em outra parte está o ponto fundamental, e nele o erro.

Ao destruir privilégios, o liberalismo parte de um princípio social falso, porque de um princípio antiegoísta. Parte do princípio de que o privilégio é um estorvo, e não de que ele é uma vantagem; isto é, encara o privilégio do lado de quem o não tem, e não do lado de quem o tem. Fazendo isto, o liberalismo encara o privilégio do lado antiegoísta; e, portanto, socialmente falso. Encara o privilégio como uma coisa que não deve haver. Se fosse uma doutrina socialmente sã, devia encará-lo como uma coisa que devia haver em mais abundância, visto que, para quem o tem, é uma vantagem. Tal aplicação do princípio seria — é certo — absurda, mas o absurdo estaria na extensão da aplicação, e não em o próprio princípio; no liberalismo, porém, o princípio é, já de per si, absurdo, de sorte que qualquer aplicação que dele se tente virá sempre eivada do vício de origem.

Neste critério antiegoísta está, pois, o erro do liberalismo; e tanto é erro que veremos a espontânea operação do princípio e do critério contrários — primeiro, em uma sociedade bárbara, e, portanto, próxima dos próprios instintos e livre de perversões acumuladas; segundo, na nossa própria sociedade pervertida e decadente, por o que de fundamental opera por baixo da aparência igualitária ou liberalista.

Como época bárbara, brutalmente instintiva, não temos melhor, ou mais estudado, exemplo que a Idade Média.

E qual o critério de “liberdade” na Idade Média? O povo medieval tinha a liberdade como uma regalia, como um privilégio, como qualquer coisa que essencialmente valia por os outros a não terem. Qualquer citação de uma autoridade competente poderá servir para autenticar esta asserção. Melhor que quaisquer outras servirão as palavras do Prof. A. W. Pollard, na sua History of England:

«Em 1215 uma “liberdade" era a posse, por uma pessoa definida ou um grupo definido de pessoas, de privilégios bem definidos e tangíveis... O valor de uma “liberdade" estava em que, pelo seu gozo, não se era como os outros homens» (p. 53).

No que respeita à época presente, com os seus preconceitos liberalistas e igualitários, veremos que eles em nada impedem a operação instintiva, em plena afirmação igualitária, do fundamental egoísmo humano. Escolheremos para exemplo a mesma classe — a classe popular —, e iremos colher a amostra naquela parte da classe popular que mais extremo “liberalismo” estadeia — os infelizes mentais cuja ignorância sociológica e desconhecimento da história os leva a ter ideias socialistas ou parecidas, demência terminal do liberalismo. Vemos, com efeito, que esses pobres diabos busquem espontaneamente qualquer resultado de acordo com a base liberalista e igualitária da sua doutrina? Não o vemos. O que encontramos, é, ao contrário, a tendência para substituir aos pretensos “privilégios” do capital uns outros “privilégios” — os do chamado “trabalho”. A tendência espontânea é para a inversão dos factores, não para a sua igualização. E a célebre “ditadura do proletariado”, último avatar da ignorância e da asneira, revela, com a ingenuidade mental característica dos seus criadores, aquele naturel que revient au galop, quanto mais o querem escorraçar.

Um povo, de resto, sobretudo se se sentiu oprimido, pode a princípio simpatizar com o movimento liberalista; mas, tarde ou cedo, de desconfiar dele, passa a odiá-lo. O caso é simples. Ou o liberalismo segue o seu caminho lógico e justo, ou não o segue. Se o segue, entra, mais tarde ou mais cedo, em conflito com privilégios que a ele, povo, tocam já de perto; porque privilégios todos os têm, reais ou esperados. Se o não segue, que é o que em geral acontece — dada a impossibilidade radical da operação do liberalismo e os atritos que quotidianamente encontra ao tentar existir — vai o liberalismo gradualmente desviando-se do seu primitivo intuito, porventura sincero, e torna-se uma mera arma de espoliação para os políticos sem escrúpulos, modo-de-viver dos Lloyd Georges e dos Clemenceaux da charlatinice política internacional. Mero implemento de ambiciosos, quando não positivamente de ladrões, o liberalismo acaba por despertar as iras do povo, quando o caso se não dê de no povo, por decadente, já não haver a possibilidade sã da ira legítima.

O caso é, pois, que, sendo assim antiegoísta, o liberalismo é radicalmente antipopular. Para se ser “liberal” é preciso ser-se inimigo do povo, não ter contacto nenhum com a alma popular, nem a noção das noções instintivas que lhe são naturais e queridas. Teoria, de resto, originada por emissários da aristocracia inglesa, no seu conflito com a velha monarquia; espalhada, depois, por homens de letras franceses, mais como arma contra a Igreja que contra o ancien régime, o liberalismo ainda hoje se conserva

fiel à sua origem extrapopular. Hoje, porém, são os transviados do povo quem teoriza — os infelizes que saíram do povo e, perdido o contacto com ele e com os seus instintos naturais, não subiram, porém, a nenhuma das aristocracias que o esforço pode conquistar, eternos intermédios da vida social, sem cultura verdadeira, sem posição conquistada, sem valor interna ou externamente definido. Escravos de todas as invejas e de todas as falências, o seu subconsciente indisciplinado espontaneamente os leva a colaborar em quanto seja obra de dissolução social, traidores naturais a tudo, excepto à sua própria incompetência para tudo. Tão triste e débil época é a nossa que as próprias teorias falsas desceram de categoria nas pessoas dos seus sequazes! Feito, assim, por quem ou não é povo, ou já não sabe sentir como povo, que admira que este sistema venha eivado de todos os vícios anti-instintivistas, de todas as raivas antinaturais?

Ainda se o liberalismo compensasse o ser antiegoístico com o ser, de qualquer forma, um aspecto do sentimento patriótico; se, por exemplo, a teoria liberal tivesse por base o ser aplicada só a determinada nação — a dos seus teóricos — com o fim, absurdo mas explicável, de dar a essa nação a superioridade, pelo “gozo da liberdade”, sobre todas as outras, até certo ponto, talvez o liberalismo, equilibraria o mal que lhe advém da outra parte da sua tese. Mas se há traço característico do liberalismo é o de ser extensivo a toda a humanidade, de ser uma panaceia universal. E, assim, nem esta defesa, absurda que fosse, lhe resta.

O assunto comportaria, a não ter que limitar-se, uma série muito mais extensa de considerações, entre as quais a menos interessante não seria, por certo, a demonstração de que um povo são é espontaneamente aristocratista ou monárquico; de que nunca um povo foi liberal ou democrático; de que nunca um povo defendeu, de seu, senão os seus egoísmos, indivíduo a indivíduo, e a sua pátria, colectivamente; que nunca, nunca, excepto por doença da socialidade, ou perversão da decadência, os seus “direitos”, as suas “justiças” foram assunto por que um homem do povo desse o esforço de se levantar de um banco ou de tirar as mãos das algibeiras.

Deixemos, porém, o assunto, e esses “direitos” e “justiças” aos que forçaram o comércio do ópio sobre os chineses, estrangularam as crianças irlandesas com os cabelos maternos, e deixaram morrer as mulheres bóeres nos campos de concentração do Transval.

Consideremos agora a oposição, mais fácil de determinar, entre o instintivismo social, no seu característico antagonismo e a Democracia moderna, no pacifismo que a caracteriza.

O patriotismo — vimos nós e demonstrámos — é a base do instinto social, é, mesmo, o único instinto social, verdadeiro; não é, de resto, mais que um egoísmo colectivo, ou, melhor, a forma colectiva do egoísmo, base de toda a vida psíquica.

Demonstrámos também que, ao contrário da inteligência — que busca compreender e, pois que o busca, não pode odiar aquilo cuja compreensão a atrai —, o instinto odeia tudo quanto não seja ele, que o instinto é, portanto, radicalmente antagonista.

Da fusão destas duas constatações se vê que o sentimento patriótico é forçosamente antagonista; que, portanto, a atitude normal de qualquer nação com relação às outras é o ódio; que a guerra é, por conseguinte, o estado natural da humanidade, não sendo a paz, evidentemente, mais que um estado de preparação para a guerra.

E esta a velha tese do povo inglês, do dammed foreigner (“o raio do estrangeiro”); é esta a teoria para sempre célebre de Heraclito, quando, comentando o desejo de Homero de que as guerras cessassem de vez, diz que se as guerras cessassem, a própria vida cessaria, porque «a guerra», diz, «é a mãe de todas as coisas». E assim é. Atraso ainda da evolução humana? pecado original pesando sobre a raça dos homens? Seja o que for, tal é a dura lei, e por certo a tese cristista da maldade fundamental dos homens tem mais base que a tese romântica e liberal da sua bondade inata. Homo homini lupus é uma das tristes certezas da vida.

A tese, com efeito, pode ser alargada, e aplicada não só ao egoísmo nacional como também ao egoísmo dos indivíduos.

Se o amor é a fonte de toda a vida física, o ódio é a fonte de toda a vida psíquica. E do ódio entre homem e homem que a civilização nasce, é da concorrência entre homem e homem que o progresso surge, é do conflito entre nação e nação que a humanidade recebe o seu impulso.

Só a paz é infecunda, só a concórdia é improfícua, só o humanitarismo é anti-humanitário. E assim morre, ante a análise sociológica, o último dos falsos princípios da Democracia moderna.

E como vimos que a base do instintivismo social é o sentimento patriótico; como vimos que o instinto é radicalmente antagonista, sabemos, por conclusão, que não há instinto patriótico que não seja antagonista e guerreiro. No que pacifista, portanto, a Democracia moderna é radicalmente inimiga do sentimento patriótico, radicalmente antipatriótica e antinacional.

Contrapusemos, assim, sucessivamente aos três princípios fundamentais do instintivismo social, base de toda a saúde das colectividades e das nações, os três princípios fundamentais do fenómeno de baixo intelectualismo chamado a Democracia moderna. Vimos que à não-intelectualidade do instintivismo se opunha a pseudo-intelectualidade princípio do sufrágio, e que assim, e por esse seu princípio, a Democracia moderna é anti-social. Vimos que à conservatividade do instintivismo se opunha a pseudo-intelectualidade do instintivismo se opunha o pseudo-altruísmo nivelador do liberalismo, e que assim, e por esse seu princípio, a Democracia moderna é antipopular. Vimos que ao antagonismo do instintivismo social se opunha o pacifismo fraternitário, e que assim, e por esse seu princípio, a Democracia moderna é antinacional e antipatriótica.

E assim demonstrámos que a análise escrupulosa do que seja a opinião pública, e de quais as bases psíquicas de uma vida social sã e assente em essa opinião, leva inevitalvelmente ao esfrangalhamento integral do conceito moderno de Democracia.

Cumpre juntar a estas considerações só mais uma, tendente a esclarecer o aparecimento, nestes argumentos, de uma condicionação constante. Dissemos sempre “Democracia moderna”, e não foi sem razão que o dissemos.

“Democracia”, de per si, comporta, além deste, dois outros sentidos possíveis. Podia entender-se, sem este escrúpulo nosso, que o nosso argumento negativo era extensivo também à democracia antiga dos pagãos, sistema muito diferente, solidamente assente, como era, na dupla base da escravidão e da aristocracia, e vacinado assim contra grande número de doenças sociais. Podia também entender-se que o nosso argumento visasse a democracia monárquica (tal, na verdade, se pode dizer que era) da Idade Média. Mas essa, sobre ser bárbara, e, portanto, para o caso, insignificativa, era, por bárbara, sã, e por isso (como em um argumento casual se viu) livre da justa injúria do nosso argumento analítico.

Por isso acentuámos constantemente que os resultados destrutivos do nosso raciocínio se entendiam constantemente só com a Democracia moderna.

Resta, agora, que demonstremos a segunda parte da nossa tese primária. Provámos que a opinião pública era um instinto; provámos que a opinião pública era sempre tradicionalista. Vimos já o que se podia deduzir de ser a opinião pública um instinto. Vamos ver agora o que se pode deduzir de ser a opinião pública sempre tradicionalista.

É este o ponto em que entra em discussão aquele conservantismo, que nos cumpriu, há pouco, que distinguíssemos cuidadosamente da conservatividade, então tratada.

Se a opinião pública é sempre tradicionalista, segue que o impulso manifestado dessa opinião será sempre no sentido de se conservar o que está, as tradições do país, os hábitos e costumes do povo. Mas para se afirmar em apoio ao que já existe, ou ao que é hábito ou tradição existir, não há, evidentemente, necessidade de afirmação; ninguém pede o que já há. Há, porém, uma excepção: é quando isso, que já há, esteja ameaçado.Temos, pois, como primeira conclusão, que a opinião pública nunca se afirma sendo contra alguém, que o tradicionalismo nunca se manifesta senão contra o antitradicionalismo. Quer dizer, não há nunca indicações positivas da opinião pública; todas as suas indicações são negativas, mau grado o seu carácter afirmativo de violência. A opinião pública nunca pede que: pede sempre que não.

O corolário imediato a tirar desta conclusão é que não há revoluções nacionais; os únicos movimentos revolucionários que podem ser na verdade nacionais são as contra-revoluções. E no capítulo de revoluções, propriamente, podem considerar-se nacionais as que são feitas contra um domínio estrangeiro, reacções essas, também, do tradicionalismo insultado no que tem de mais fundamental — a tradição maior de todas, a da independência da pátria.

Por isso são revoluções nacionais o 1.º de Dezembro de 1640 e o 8 de Dezembro de 1917; por isso o não são, sendo meros fenómenos de baixa política, a rebelião que implantou o constitucionalismo, e a sublevação que instaurou a república.

Por isso os ídolos populares, quando não sejam (como César ou Napoleão) chefes militares,como seu apelo fundamental ao instinto guerreiro e patriótico, são sempre chefes de momentos contra-revolucionários. (Napoleão ainda, Bismarck, Sidónio Pais.) Mesmo figuras secundárias, como Carlos II de Inglaterra, ou D. Miguel I, de Portugal, tiveram a aura nacional que compete aos representantes supremos das contra-revoluções.

A revolta popular contra o domínio estrangeiro e a revolta popular contra o domínio de revolucionários nacionais são, no fundo, da mesma origem, partem ambas do mesmo instinto — a tradição ferida, ou no seu conjunto patriótico, ou no seu hábito político e social. Digo mal, digo pouco: há entre as razões para os dois tipos de revolta uma identidade absoluta. Visto que existem revoluções, e visto que (como se viu) não existem revoluções nacionais, conclui-se que toda a revolução é um acto de desnacionalização, uma invasão estrangeira espiritual. E a história assim o confirma — quer no caso da Revolução Francesa, que foi uma intrusão de ideias inglesas; quer no estabelecimento dos vários constitucionalismos e repúblicas modernos, intrusão, nos vários países, de uma indestrinçável mixórdia anglo-francesa.

De modo que com verdade se pode dizer que não há revolta nacional que não seja contra o estrangeiro — quer ele seja o estrangeiro de fora, quer ele seja o estrangeiro de dentro.

E assim, como há verdade popular só nesses movimentos, a Democracia moderna, sobre ser provada falsa em toda a extensão dos seus princípios, queda provada também falsa em toda a extensão dos seus processos, que são os revolucionários.

Ser revolucionário é servir o inimigo. Ser liberal é odiar a pátria. A Democracia moderna é uma orgia de traidores

1919

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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1ª publ. in Acção, nº 1 e 3. Lisboa: 19-5-1919 e 4-8-1919