II - Digo de Alberto Caeiro que ele é o maior poeta moderno,
II
Digo de Alberto Caeiro que ele é o maior poeta moderno, porque, sendo um dos maiores de todos os tempos, ele não pode senão brilhar demasiadamente, na nossa época prolixa de inferioridades, treda hora do estertor de uma civilização que nunca foi completa.
Ponhamos de parte, desde já, a primeira feição destes poemas, que salta à nossa vista. Refiro-me à sua deserção de toda a disciplina rítmica convencional. Afirmo, desde já, que com ela não concordo. (Não importa). Nessa arritmia não há inumeração. Desde os livros proféticos de Blake, os poemas sombrios de Southey, o de Shelley, feito à sombra destes, até à plena vida do verso livre nos livros de Walt Whitman, para acabar na construção, não direi geral, mas vulgar, desse princípio na nossa época, o verso livre não constitui hoje novidade nem sequer uma só escola o dá por seu.
A única coisa que pode fazer sobre o verso livre é a individualidade rítmica, que o poeta pode nele exprimir. Nos grandes cultores, nos legítimos cultores do verso livre, o tom interior da verso, o seu ritmo espiritual varia de poeta para poeta. Para a plebe dos rimadores o verso livre não é senão uma demonstração a mais do que não deve ter entrada no poema.
Nos versos livres de um Blake, nos de um Whitman há um som diferente, uma curva distinta. Dir-se-iam escritos em ritmos diferentes, embora nem uns, nem outros, estejam escritos, no que convencionalmente se possa designar qualquer espécie de ritmo. Semelhantemente no único grande cultor português do verso livre, o sr. Álvaro de Campos, uma individualidade se sente nítida e pessoal, na maravilhosa técnica estrófica que se mostra através da, puramente aparente, descoordenação daquela arritmia.
O mesmo sucede com Alberto Caeiro. O seu verso livre não tem nem o ritmo bíblico, monótono dos versos dos livros proféticos de Blake; nem aquele estudadamente andante que, como êxito ritmista, procurava Southey, Shelley, Mathew Arnold; nem o de Whitman, dogmático e espaçoso, como uma planície ao sol; nem o de Álvaro de Campos fortemente contido dentro de um conceito nitidamente sinfónico da Ode. O de Caeiro é brusco, absolutamente directo, rectilíneo sempre.
Mas aqui, se originalidade se mostra, é uma originalidade no inferior. Onde Caeiro é deveras grande é na estrutura interna dos seus poemas, no conceito filosófico de todo o poeta novo, que subjaz à juvenilidade que o caracteriza.
Caeiro é, em filosofia, o que ninguém foi: um objectivista absoluto.
Inventou os processos poéticos de todos os tempos. Reparai bem no que digo — de todos os tempos. Inventou os processos filosóficos da nossa época, indo além da pura ciência em objectividade. Quebrou com todos os sentimentos que têm sido posse da poesia e do pensamento humanos.
Nada o demonstra melhor que um verso que é talvez o supremo da sua obra.
«A Natureza é partes sem um todo»
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
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