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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Ricardo Reis

Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da emoção.

Um poema é a projecção de uma ideia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão somente o meio de que a ideia se serve para se reduzir a palavras.

Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma ideia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstractamente emotiva, que não implique ao menos o esboço de uma ideia.

Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação — «Ah», digamos — não contém elemento algum intelectual. Mas não existe um «ah», assim escrito isoladamente, sem relação com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o «ah» como falado e no tom da voz vai o sentimento que o anima, e portanto a ideia ligada à definição desse sentimento; ou o « ah» responde a qualquer frase, ou por ela se forma, e manifesta uma ideia que essa frase provocou.

Em tudo que se diz — poesia ou prosa — há ideia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projectar a ideia em palavras através da emoção. Esse meio e o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém menos que uma só não creio que possa ser.

A ideia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projecção desse contorno, a afirmação da ideia através de uma emoção, que, se a ideia a não contornasse, se extravasaria e perderia a própria capacidade de expressão.

É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A ideia serve a emoção, não a domina. E o homem — poeta ou não-poeta — em quem a emoção domina a inteligência recua a feição do seu ser a estádios anteriores da evolução, em que as faculdades de inibição dormiam ainda no embrião da mente. Não pode ser que a arte, que é um produto da cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem tem de si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança com as manifestações mentais que distinguem os estados inferiores da evolução cerebral.

A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.

Como o estado mental, em que se a poesia forma, é, deveras, mais emotivo que aqueles em que naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado poético se aplique uma disciplina mais dura que aquela que se emprega no estado prosaico da mente. E esses artifícios — o ritmo, a rima, a estrofe — são instrumentos de tal disciplina.

No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe, se pode dizer que são artifícios a vontade que corrige defeitos, a ordem que policia sociedades, a civilizacão que reduz os egoísmos à forma sociável.

Na prosa mais propriamente prosa — a prosa científica ou filosófica — a que exprime directamente ideias e só ideias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de ideias vai discipIina bastante. Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das ideias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria. Na prosa amplamente emotiva — aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia — há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanha a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso.

O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso. Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical (|) — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo género de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.

A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou reflectida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível. A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia.

Quase se conclui do que diz Campos que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projectaria em versos como os que ele escreve; e depois, reflectindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmónica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela a ordem que no ritmo há.

Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma ideia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmónico pela junção equilibrada de ideia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súbdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.

s.d.

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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1ª publ.: Obra Poética. Fernando Pessoa. (Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz.) Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1960.