III - Em que é que este homem pode ser aquilo que eu disse...
III
Em que é que este homem pode ser aquilo que eu disse que ele era — o reconstrutor do sentimento pagão?
O caso só parecerá confuso a quem, como o geral dos meus contemporâneos, como, aliás, o geral dos nossos contemporâneos, de todo ignore qual seja a nova ideativa da atitude característica do paganismo.
Como todos os poetas universais Caeiro é de uma simplicidade absoluta. Nada, como os seus versos, vive tão longe dos modernos inventores de sensações, dos subtilizadores de sentimentos simples, dos que mastigam a própria alma até a terem que desconhecer — polpa amorfa de sensações indefinidas.
Todos os grandes poetas são simples. E, se são difíceis de compreender, é que a sua simplicidade envolve princípios novos, uma noção nova das coisas, e essa, por nova, que não por confusa, salta fora dos hábitos mentais que condicionam a compreensão.
Acabo como comecei. Alberto Caeiro é um dos maiores poetas do mundo, o maior, por certo, dos tempos modernos.
... aquele a quem a crítica chamará um dia o imortal reconstrutor não do paganismo, mas daquele sentimento objectivo do universo que é o que deu vida, sangue e poder a todas as manifestações da ideologia pagã, aquela manifestação que a nossa ignorância e a nossa sensibilidade cristianizada tomou por a alma e a essência do paganismo.
A poesia de Alberto Caeiro consiste principalmente em negar a poesia das coisas.
Dirão que, em muitas expressões, algumas apresentadas, mesmo, com a fraseologia da escola avançada, Caeiro não está de acordo com os novos princípios. Mas, aparte a resposta que aquele espantoso espírito lógico antepôs a essa objecção provável repare-se que ele, o pagão absoluto, não caiu do céu, mas nasceu da terra, não (...), mas emerge do seu tempo. Vénus, quando sai dos mares, traz molhada ainda, escorrendo pela sua capa divina, gotas de água salgada que não a distinguem como deusa, mas a nomeiam filha de mares.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
- 29/96.Ordenação corrigida segundo: Fernando Pessoa e o Ideal Neo-Pagão - Subsísios para uma edição crítica . Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição de Luís Filipe B. Teixeira.) Lisboa: F. C. Gulbenkian, 1996.