Quando, há quatro anos quase, eu tive ocasião de mostrar a Alberto Caeiro,
Quando, há quatro anos quase, eu tive ocasião de mostrar a Alberto Caeiro, em Lisboa, a que princípios conduziu a sua obra, ele negou que ela a tais princípios conduzisse. Para Caeiro, objectivista absoluto, os próprios deuses pagãos eram uma deformação do paganismo. Objectivismo abstracto, os deuses já eram a mais no seu objectivismo. Ele bem via que eles eram feitos à imagem e semelhança das coisas materiais; mas não eram as coisas materiais, e isso lhe bastava para que nada fossem.
As coisas, para mim, têm um outro sentido. Os deuses gregos representam a fixação abstracta do objectivismo concretizador. Nós não podemos viver: sem ideias abstractas, porque sem elas não podemos pensar. O que devemos é furtar-nos a atribuir-lhes uma realidade que não derive da matéria de onde as extraímos. Assim acontece aos deuses. As ideias abstractas não têm realidade verdadeira: têm, porém, uma realidade humana, relativa apenas ao lugar que o animal homem tem na terra. Os deuses pertencem à categoria das abstracções, no que respeita à sua relação com a realidade, mas não pertencem a essa categoria como abstracções, porque o não são. Como as ideias abstractas nos servem para nos conduzirmos entre as coisas, os deuses servem-nos também para nos conduzirmos entre homens. Os deuses são portanto reais e irreais ao mesmo tempo. São irreais porque não são realidades, mas são reais porque são abstracções concretizadas. Uma abstracção concretizada passa a ser pragmaticamente real; uma abstracção não concretizada não é real mesmo pragmaticamente. Platão, erigindo em pessoas abstractas as ideias, seguiu o velho processo pagão da criação de deuses; colocou, porém, os seus deuses longe demais. Uma ideia só se torna um Deus quando é devolvida à concreção. Passa então a ser uma força da Natureza. Isso é um Deus. Se isto é uma realidade ou não, não sei. Pessoalmente creio na existência dos deuses; creio no seu número infinito, na possibilidade de o homem ascender a deus.
O criador de civilização é uma força da Natureza; é portanto um deus, ou um semi-deus.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 399.Prefácio a Caeiro


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