Surpreendeu-me de repente, ao tomar para uma pequena clareira,
Surpreendeu-me de repente, ao tomar para uma pequena clareira, uma figura imponente que, de toga à romana, a cabeça de todo branca artística no descoberto, recitava numa voz (bela voz! disse eu ao dr. Gomes) o princípio das lamentações de Prometeu no drama de Ésquilo. Ao aproximar-nos viu-nos e apressando ligeiramente o declamar para chegar ao fim desse período, virou-se para nós, chegado esse, e saudou o meu acompanhador.
Vi então bem o internado. Alto e de uma bizarria com a qual o seu trajo antigo maravilhosamente quadrava, cabelo t[odo] branco, barba branca de todo e um olhar vivo e altivo, onde talvez apenas o observador precauto qualquer luz acharia que traisse a alienação do espírito. O dr. Gomes apresentou-me; fui grave e respeitosamente saudado e confesso que senti, a par de minimamente aquela vaga inquietação e receio que os loucos soem inspirar, um como que respeito - quase veneração por aquela nobre figura.
Seguimos lentamente pela rua abaixo, no meio o dr. Gama Nobre, e eu à direita, falando primeiramente em coisas insignificantes - eu e o alienista, porque o visitado respondia pouco e distraidamente. Eu, que estava depois de o ver mais ansioso de lhe ouvir a exaltação da antiguidade, levei enfim a conversa para as proximidades do meu desejo referindo-me ao trecho de Ésquilo que o nosso advento surpreendeu na boca do dr. Gama Nobre. A m[inha] referência teve o efeito desejado.
- Mas Ésquilo, disse Gama Nobre, Ésquilo - a Grécia, de onde vem, a antiguidade clássica, a verdadeira e única civilização para chegar à qual o mundo foi obscuro desde a sua criação, e depois da qual tornou a escurecer! Tudo antes disso foi pré-histórico, tudo depois disso proto-histórico!
E quedou-se numa exaltação entristecida, a face ensombrada e o olhar (...) e brilhante.
- Este m[eu] amigo, disse o dr. Gomes, gostava naturalmente de ouvir o dr. falar-lhe circunstanciadamente da civilização antiga. Talvez mesmo pudesse, recordando-a hoje, fazer propaganda dela (Gomes piscou-me o olho) aos degenerados homens de hoje...
- Propaganda? exclamou o dr. Gama Nobre, Propaganda! Não há propaganda a fazer! Há a lamentar o perdido bem e (...) o mal presente. Degenerámos, porque temos vindo, há 20 séculos, degenerando. Isto não se cura. Não há remédio hoje. Arranjamo-nos com [o] que podemos na nossa decadência e na n[ossa] escuridão. O que foi, foi. O que se perdeu, perdido está. Propaganda?! e teve um sorriso triste e um erguer de ombros entre desdenhoso e terminante.
- Mas ao menos, intervim - eu desejaria que o dr. me explicasse em que estamos decadentes e às escuras. Eu não compreendo bem assim de chofre...
- Se quer ter a paciência de me ouvir, e quer demorar a sua atenção no meu argumento, desde o princípio até ao fim...
- Ora essa...
- Bem... Não há perigo, dr., de sermos interrompidos?... Não gosto de interrupções... Um argumento é um argumento... Para se poder falar... Não, não nos sentemos (isto para mim que olhara para um banco), sejamos peripatéticos. Andando pensa-se melhor do que sentado. Nenhum pensador concebe sentado alguma ideia digna de concepção. Sentam[-se] para escrever - e, ai deles - o que a ideia escrita tantas vezes lhes [...]!
O dr. Gama Nobre recompôs a toga com um gesto digno e alçando um pouco, como que para se incutir mais clareza no pensamento para mais clareza pôr na voz, começou a sua exposição. Não sei quanto tempo - horas ou minutos - durou aquele (...) memorável. Para mim tempo desaparecera. Não sei que voltas demos no decorrer daquele argumento. O espaço cessara para mim. O meu sorriso inicial desapareceu pouco a pouco. Só que era já o princípio do crepúsculo quando acabei de ouvir. E assim como num sonho, sentindo, como num sonho, ruiu em torno de mim toda a estrutura (...), que eu recebera por sólida, da civilização moderna. Mas lembro-me nitidamente de tudo o que disse o argumentador. O relembrador da antiguidade falou assim:
II
- Peço-lhe que me ouça quanto possível sem pasmo, o menos possível atento à quotidianidade e uso (...) das coisas que eu vou destruir. Imagine-se, podendo, um habitante de outro planeta, vindo hoje aqui por uma queda estranha. Faça quanto puder de conta que a vida de hoje lhe não é a essência inconsciente do seu psiquismo, a base inobstrusiva da sua assumida ideação. Peço-lhe isto para que q[uan]to possa, me meça os argumentos não como estranhezas ou novidades, mas como argumentos apenas. É apenas lealdade para com a lógica que eu lhe peço. Posto isto, entro na minha tese.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 229.N. do A.: «Na casa de saúde de Cascais».