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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

III. A análise do dinamismo social permite a constatação...

Oligarquia das Bestas

                                III

A análise do dinamismo social permite a constatação de que as sociedades se dividem, na sua linha geral de Vida evolutiva e tendência política em três grupos: os indiferentes, os equilibrados e os em desequilíbrio. Os primeiros não contam politicamente senão pela significação que para o sociólogo tem a sua computação [?] numérica. São de várias espécies, mas não importa aqui indicar, analisando, mais do que as duas subdivisões em que o género político primariamente se (re)parte. São os indiferentes por natureza e os indiferentes por decadência. Todo o homem normal e são se interessa — são também o país — na vida política, colaborando nela. Nos períodos de decadência social e, portanto individual, a indiferença pela política, o ignorá-la com o sentimento, ou o medo das reformas precisas, não ter ou energia ou tendência para, com o limitado esforço as querer melhorar — eis a indiferença patológica.

Caracteriza ela todos os períodos decadentes. A outra é a indiferença natural — a dos entes sociais por natureza indiferentes à política. Mulheres, crianças, etc. O aparecer nestes de tendências políticas é igual sinal de degenerescência colectiva. É fenómeno social observável em paralelismo com a indiferença dos por natureza não-indiferentes nas épocas de desintegração social e das nacionalidades. A indiferença dos cidadãos representa a perda do sentimento social; igual perda mostra a actividade política, por exemplo, das mulheres, que não têm, na normalidade evolutiva, função citadina outra do que a meramente conjugal e materna.

Seguem-se a estes, na nossa análise, os equilibrados. É o grupo cuja predominância na vida social representa uma sã vida da nação. Igualmente se dividem estes em dois grupos: os conservadores e os liberais. É da luta — luta sempre [...] e eleitoral — entre estes que vem a evolução normal e hígida de um país. São como que as duas rodas do carro do Estado. Os conservadores são aqueles que desejam e pretendem que o progresso político ou financeiro da nação se faça por alteração social produzida dentro dos moldes políticos e sociais dessa nação. São liberais aqueles cuja teoria do progresso inculca a ideia de que ele se faz por uma lenta alteração da sociedade, não tanto nem somente dentro dos moldes estabelecidos, mas mais e também por uma progressiva alteração dos próprios moldes em que essa vida social se encontra vazada. Para o conservador os moldes ficam em forma e tamanho. Muda o conteúdo. Para o liberal os moldes alargam-se mas a sua forma fica. As lutas entre conservadores e liberais são geralmente difíceis de seguir nitidamente porque, dado serem ambos equilibrados, os dois partidos frequentes vezes se interpenetram em partes e secções se [...] e misturam. O estudo ainda que superficial da vida política inglesa no séc. XIX — a mais equilibrada do mundo, (não houve muitas [...] em Inglaterra no séc. XIX) a mais exemplar de civismo e sinceridade conservadora e liberal mostram quanto é difícil discriminar literais e conservadores num período nacional normal e são.

Resta analisar a terceira categoria política, a terceira ordem de elementos políticos. Dividem-se os desequilibrados em dois partidos, na aparência e na intenção consciente opostos, na realidade política e na finalidade social inconsciente absolutamente complementares e idênticos — os reaccionários e os radicais. O primeiro olhar lançado sobre estas duas faces da [...] força desintegrante dos povos e das civilizações permite constatar a absoluta identidade de psiquismos, flagrante sobremaneira pela concordante oposição à parte progressiva, equilibrada e de [...] que é a base da vida sã da sociedade. Essa oposição é flagrante pela diferença de modo de idear, de agir e de socialmente ter [...] Ao passo que conservadores e liberais aceitam os moldes gerais da sociedade com as diferenças já acima citadas, os reaccionários pretendem estupidamente conservar não só todos os moldes sociais instituídos mas a vida social inalterável sempre nesses moldes; os radicais (...) idiotamente a um desprezo completo desses moldes na sua noção de progresso. Da basilar divergência de ambos os grupos de desequilibrados em referência ao equilibrismo, nasce a diferença absoluta de métodos. Conservadores e liberais lutam eleitoralmente e procuram cada um para dominar encontrar força na opinião e apoio numericamente superior em urna. Os reaccionários, porém, como querem manter um estado de coisas impossível e cuja evolução ou progresso seria tão absurda que nem sequer [...], vêem-se instintivados pelo seu psiquismo a empregar a força e a violência para entravar o inevitável progresso social. Os radicais, como querem destruir de vez e desprezando Saturno os moldes da actualidade social, quer — socialistas e [...] — em proveito da implantação de moldes inteiramente inconciliáveis com a noção de sociedade e de vida social, quer — radicais amorfos — para lhes substituir instituições possíveis e atingíveis mas extemporâneas ou prematuras, para chegar às quais é preciso preparação e propaganda; vêem-se, como os seus irmãos, os reaccionários, igualmente na obrigação de empregar a violência e a força. Ambos desprezam a ideia — instintiva e natural em toda o homem normal — de progresso e evolução, para se proporem, uns entravá-lo, outros (...) Facilmente se vê como ideações tão aparentemente divergentes nascem do mesmo fundamental modo de ser psíquico, caracterizado nuns e noutros por uma biforme perturbação do substrato da vida social, originária numa má conformação cerebral nos reaccionários ou radicais de temperamento e por um nervosismo menos mórbido mas susceptível de ser morbidamente influenciado nos [...] radicais e reaccionários.

Aparecendo em todas as épocas de decadência curável ou total, indiferentes mórbidos e desequilibrados, apresentando ao sociólogo significações sintomáticas tristemente concorrentes, oferecem contudo ao político aspectos para serem diferentemente tidas em consideração. Nenhum perigo advém, directamente, para o Estado da indiferença doentia para a política, ou, psiquiatricamente dizendo, da perda do sent[imento] social. A perturbação e desvairamento do mesmo sentimento, ou seja, a reacção e o radicalismo, oferecem por serem [...] da natureza, e não pessoais, um aspecto de obstrusiva perturbação que mesmo ao cidadão indiferente, apanhado de repente no meio dum tumulto radical ou reaccionário, não é fisicamente lícito ignorar. Sabido, porém, que reacção e radicalismo sempre exprimem em voz alta uma decadência e que são inevitavelmente (...) de motim e (...), cumpre, levando a análise mais longe, examinar qual a sua missão e finalidade social e em que condições essa finalidade — [...] de um ou mais de um caso [?] — é desta espécie ou daqueloutra. Sabemos como apareceram, e que é por uma decadência social qualquer, vincada e [...] de degenerescência de que os dois movimentos são identificadamente portadores. Resta averiguar qual o fim deles numa sociedade decadente, uma vez aí aparecidos, e de que efeitos, nestas condições ou naquelas, são eles por sua vez causas.

De duas coisas uma: ou a sociedade decadente em que aparecem reacção e radicalismo — estão sempre de natureza juntos, como a convexidade e a concavidade de um arco de círculo — está decadente para sempre e em dissolução final, ou está transitoriamente decadente e em vista de apodrecer nela desse [?] certo estado institucional de coisas a que outro estado tem a obrigação determinada de seguir.

No primeiro caso — o de uma decadência definitiva — reacção e radicalismo são a dupla forma do princípio desintegrador que tem por fim escangalhar completamente a vida social em todas as suas formas, reduzindo a nada o equilibrismo, forçando a empregar força por uns ou por outros e finalmente ou reduzido à potencial indiferença dos decadentes, ou absorvido por uma ou outra forma de destruição social. Isto vai no extremo degenerativo dos campos, até ao aluir anárquico e impotente da nacionalidade geralmente pela intervenção de outros países — pelo retalhar [...] do território onde os restos dos que foram equilibrados fitam numa indiferença que já não espera [...] se é dolorosa, a morte da nacionalidade, e a liquidação em subversão abjecta ou eliminação artilhada dos restos dos entes degladiantes [,] elementos reaccio-radicais. É para avançar — ressalvada a alteração crítica que produziu o aparecimento de [...] factores novos [...] (...) a França contemporânea.

Na segunda hipótese, [...] se torna que o fim da reacção é o fim inconscientemente (...) e patriótico de que um mórbido retardamento social manifestado por uma tiranização crescentemente polimorfa e omnipotente, produziu a revolução que eliminaria o sistema oligárquico que tiraniza e a instituição em cujo nome a tirania é exercida. Paralelamente com a reacção cresce, crescendo com ela [e organizando-se quanto mais ela se desorganiza] o radicalismo até pela revolução, [...] Digo o radicalismo porque é ele que, conquanto, e justamente porque mórbido, quem pode fazer uma revolução. Toda a revolução é baseada em princípios radicais e por [...] ultra-reformados que, uma vez vitoriosos e postos no poder, geralmente e normalmente, homens que não entraram nela, se dissipa completamente para dar lugar à gerência do equilibrismo higidamente conservador e liberal. Se o radicalismo não fosse mórbido não (não tomaria origem para a acção num meio decadente onde até as decadências surgem para a acção eficaz) poderia fazer uma revolução porque, para alterar a ordem pública, mesmo com razão, para lutar contra patriotas, é preciso uma causa de [...]; a falta de acção da ordem social e a perda de sentimento [?] que é usual para com compatriotas. A necessidade de uma revolução, a heroicidade, a isenção e [...] que nela possam ser postas não escapam, perante o sociólogo, de trair o estigma de (...) ainda que transitoriamente, (...) (dif[erença] entre a org[anização] eficiente e social — transitória neste (...)) Assim, nascido o radicalismo do estado mórbido social, mórbido ele próprio por ser filho de quem é, ele, feita a revolução, vai crescendo à medida que vai nascendo a normalidade, e na proporção em que for restabelecida esta de todo ou quase de todo, de todo ou quase de todo morrerá o espírito reaccionário-radical.

                               IV

Temos pois que o fim social do aparecimento do espírito radical-reaccionário é a produção de uma revolução, que, no caso da nação moribunda [?] é mais um estado revolucionário, é prolongado e (...), e no caso da sociedade transformada geralmente rápida (...)

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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