CARTA A UM HERÓI ESTÚPIDO
CARTA A UM HERÓI ESTÚPIDO
Li, sem entusiasmo e sem pasmo, as declarações que Vossa Heroicidade fez no Funchal, a propósito de questões políticas, onde se mostrou, mais uma inútil vez, que a coragem física não é, em geral, acompanhada duma grande lucidez intelectual. Permitiu-se Vossa Heroicidade, fresca ainda do cativeiro e mais fresca ainda dos aplausos de quantos pobres diabos a ilha da Madeira pôde reunir, fazer considerações, que só a um sociólogo competia ousar, sobre o modo como o nosso país fora administrado pelo Sr. General Pimenta de Castro.
Foi uma péssima ideia.
Por fácil que lhe houvesse parecido dizer umas quantas coisas estúpidas sobre o modo como a ditadura recente se havia comportado internacionalmente, permanece o facto de que essas coisas foram estúpidas e o facto de as ter dito um herói, longe de esbater o ridículo fundamental das coisas extremamente estúpidas quando ditas sobre assuntos graves, mais o pôs em relevo.
Quem lhe meteu na cabeça, ó desgraçado varredor de feiras africanas, que a habilidade para as arremetidas violentas facilitava com certeza a competência sociológica? Quem lhe insinuou, desgraçado, que o facto de ter feito frente ousada a umas tropas germânicas lhe concedia jus de opinião política? Decerto que, inexperiente no modo como os homens intrincadamente lidam uns com os outros, o cérebro futurista já pela confusão de aplausos que lhe proporcionaram, o sr. julgou ter competência para apreciar os seus superiores políticos e procedeu no caso com o plebeísmo fundamental de todas as criaturas fisicamente valentes.
Se um campeão de pesos — um campeão, por exemplo, do arraché — se pusesse a escrever sonetos, baseado, para si próprio, no facto de que conseguira erguer, em determinada posição de braço, uns tantos excessivos quilos, toda a gente riria da sua precipitada audácia que julgara o êxito no esforço muscular competência bastante para tentar o êxito no esforço poético. E contudo o seu caso, meu desgraçado e estúpido herói, não passou deste ridículo comenos. A circunstância de se ter batido heroicamente em Naulila pareceu-lhe que lhe dava azo psíquico a arcar com ideias abstractas e com noções sociológicas, e, assim, o sr. ousou largar em público, através de um discurso que foi condenado a pronunciar, opiniões que, normalmente admissíveis na lazeirenta competência dos moços de esquina, não têm contudo mais relevo do que as opiniões normalmente características do género de artistas citado.
Pobre parvo heróico, que ousou pronunciar sobre um dos melhores ditadores da nossa história um labéu inútil de traidor quasi, quando o único labéu que daí resta é o de estúpido para si. Vá para casa, ou vá para a guerra. Deixe a sociologia e a política. Que diable alliez-vous faire dans cette galère? Nada, meu pobre muscular, meu pobre sem-nervos, nada. Para casa, para a guerra, para o esforço físico, desgraçado. Deixe aos outros, aos competentes, a análise da situação política. Erga-se, herói, e cale-se, parvo.
De onde lhe veio a ideia, ó simples soldado!, que podia ter opiniões sobre assuntos políticos, e que são, em sua essência última, sociológicos? Quem lhe transtornou o cérebro a tal ponto que lhe pareceu provável que as sombras de ideias que usualmente --habitam as almas confusas dos práticos, podiam ser por si emitidas com o aspecto firme de noções políticas? Que bebedeira de celebridade o levou pela mão, perfidamente, até conseguir que lançasse para a publicidade das gazetas esses pobres e tacanhos conceitos, próprios de qualquer recruta analfabeto, que se permitiu ter a propósito da ditadura do general Pimenta de Castro?
Onde estudou Vossa Heroicidade a sociologia? Em que loba Romana bebeu este Rómulo de Naulila o leite da ciência do governo? Em vez da atitude comedida e modesta que compete a um homem cuja acção é militar e prática, este indivíduo aventurou-se, com uma coisa que já não é ousadia, porque aqui é estupidez, até formular opiniões sobre a situação do país de que não sabe nada, das condições políticas do país, que não conhece, da atitude dos grupos aristocráticos portugueses, cujo representante espontâneo, o ditador recentemente deposto por uma revolução estomacal, foi das figuras que mais vincou o protesto necessário das elites portuguesas contra este domínio de carbonários e de ladrões, de arruaceiros e de gatunos, que lá vai para cinco anos nos conturba. Que sabe o sr. disso, para que venha assim estupidamente insultar os seus superiores não só hierárquicos, mas intelectuais também? Sabe por acaso que o general Pimenta de Castro tinha consigo todo o país, menos a parte revolucionária, menos a Junta dos Interesses Próprios, menos esse prolongamento fadista da monarquia que enxameia aí pelas esquinas e deu azo a um professor espanhol que escrevesse a nosso respeito nacional palavras que ardem, porque são justas, e nos fazem corar, porque nos descreveu? A indignação sobe e cresce quando se vê que este homem, que podia estar alto e digno na modéstia intelectual da sua atitude de combatente, vem galgar por cima dos muros da sua competência para nos fazer discursos que seriam desculpáveis em Costa (chefe de assassinagem) e admissíveis em qualquer dos espanhóis do interior que compõem o partido democrático.
Num livro, que preparo, demonstrarei sociologicamente que esta revolução de 14 de Maio não foi mais do que uma reconstrução republicana dos princípios monárquicos de governo, agravada pela indisciplina que, como revolução, causou, e, como revolução feita por autênticos penitenciários, mais que causou.
Que sabe o sr. da Alemanha, salvo que teve que se defrontar — e heroicamente o fez — com os seus soldados? Que sabe o sr. da sua atitude na guerra da razão fortíssima porque ela faz esta guerra, das causas íntimas deste conflito todo? Não sabe nada, é claro, e ninguém lhe levaria a mal não saber nada, se não se tivesse permitido — estranha coisa num herói, que não costuma rebaixar o inimigo — fazer lamentáveis considerações a respeito deste país. Que longe que o sr., e todos os que estão consigo, andam das aspirações profundas da alma nacional, que não andam aí pelas ruas de Lisboa, nas mãos dos carbonários, mãos cujo polegar, na maioria dos casos, o posto antropométrico não desconhece (...)
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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