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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

PASSAGEM DAS HORAS [d]

PASSAGEM DAS HORAS

Passo adiante, nada me toca; sou estrangeiro.

As mulheres que chegam às portas depressa

Viram apenas que eu passei.

Estou sempre do lado de lá da esquina dos que me querem ver,

Inatingível a metais e encrustamentos.

Ó tarde, que reminiscências!

Ontem ainda, criança que se debruçava no poço,

Eu via com alegria meu rosto na água longínqua.

Hoje, homem, vejo meu rosto na água funda do mundo.

Mas se rio é só porque fui outro eu

A criança que viu com alegria seu rosto no fundo do poço.

Sinto-os a todos substância da minha pele. Toco no meu braço e eles estão ali.

Os mortos — eles nunca me deixam!

Nem as pessoas mortas, nem os lugares passados, nem os dias.

E às vezes entre o ruído das máquinas da fábrica

Toca-me levemente uma saudade no braço

E eu viro-me... e eis no quintal da minha casa antiga

A criança que fui ignorando ao sol que eu haveria de ser.

        Ah, sê materna!

        Ah, sê melíflua e taciturna

        Ó noite aonde me esqueço de mim

        Lembrando...

s.d.

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

 - 26g.

1ª versão: Poesias de Álvaro de Campos . Fernando Pessoa. (Nota editorial e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1944.