Li, sem entusiasmo e sem pasmo, o relato das tristes palavras...
Li , sem entusiasmo e sem pasmo o relato das tristes palavras que Vossa Heroicidade pronunciou no Funchal. No seu discurso de agradecimento, falou de questões políticas, e mais uma inútil vez se mostrou que a coragem física não é, quase nunca, acompanhada duma grande lucidez intelectual. Permitiu-se Vossa Heroicidade, fresca ainda do cativeiro e mais fresca ainda dos aplausos madeirenses, fazer considerações, que só a um sociólogo competia ousar, sobre o modo como o nosso país fora administrado pelo Sr. General Pimenta de Castro.
Não fez — bem sei — uma dissertação sobre o assunto. Não foi tão longe o seu desvario. Mas meia dúzia de frases em que se referiu à atitude do recente ditador perante o representante da Alemanha, na curta frase elogiosa com que fez o seu magro possível por consagrar o 14 de Maio, deu azo de sobra — dado que o sr. era, ao momento, uma figura consagrada pelos aplausos e, e investida portanto dum relevo patriótico — a que se lhe possam dirigir estes comentários. Direi mais, talvez: deu azo de sobra a que seja um dever fazer-lhe estes comentários qualquer pessoa que os possa fazer.
Temos então que Vossa Heroicidade, em quatro ou cinco frases claríssimas, nos deixou ver que entendia que o governo do Sr. Pimenta de Castro tinha sido antipatriótico e maléfico: que a revolução que o derrubou, tinha sido, portanto, um benefício; que a campanha, que aí se tem feito, insistindo pela nossa entrada na guerra, tem sido amplamente justificada. Conclui-se, também, do seu discurso [,] que pensa a respeito dos alemães a costumada série de coisas que os nossos jornais nos impingem diariamente. Sabe-se que o sr. quer que se vingue o desastre de Naulila. Não me lembro se disse mais alguma coisa que seja de interesse fixar. O que refiro basta, e sobra, para definir a sua atitude e justificar os meus comentários.
Parecerá talvez estranho que se vá agora fazer comentários a opiniões há tanto tempo expostas. É que essas opiniões, emitidas por qualquer dos intrujões políticos que por aí andam, não assumem categoria para que alguém as discuta. Sob o ponto de vista intelectual, é claro, que, por o sr. as emitir, também não a assumem, dado que a sua competência sociológica e política me parece dever ser acentuadamente negativa. A sua figura, porém, ganhou um certo relevo — creio que merecido — e a sua opinião, sendo aparentemente a de um bravo soldado, etc., etc., e não de um político profissional, pode parecer mais digna de atenção. Sem dúvida que a algumas pessoas deve ter impressionado.
Pode pensar-se que, na sua voz, directa e simples, de soldado que cumpriu o seu dever, fala, não a suspeita dos políticos, mas a alma franca e ingénua do povo, que a sua opinião tem, portanto, um carácter representativo da essência da alma nacional. A este propósito é que a sua opinião pode ser perigosa . Por isso eu, que julgaria inútil comentar qualquer opinião dessas, quando a falasse um político, dou uns momentos de atenção ao seu discurso no Funchal (...) tépida ainda dos aplausos madeirenses.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
- 84.«Carta a um herói estúpido».