Acontece que, enquanto estas sinistras coisas se passam nas ruas...
Acontece que, enquanto estas sinistras coisas se passam nas ruas e nas praças, outras se preparam, lentamente, na divina sombra das almas. Assim é que, pouco tempo depois de proclamada a República, apareceu no Porto a "Renascença Portuguesa". Nucleou essa instituição florescente em torno ao alto pensamento português do Poeta Teixeira de Pascoaes. Desviou-se depois, é certo, do seu nítido primeiro intuito. Abandonou a flagrante intenção portuguesa com que começara. Mas no fundo essa intenção ainda existe, e enquanto exista a grande Alma lusitana de Pascoaes, tal corrente, creio, existirá. Sem plena consciência, é certo, mas com um sagrado instinto patriótico, Pascoaes e os que o seguiram procuraram chegar a um conceito português da Vida. É a primeira tentativa que no género se fez em Portugal. Os poetas da "Renascença" puseram-se a elaborar — como poetas, por certo, mas pelos poetas é que estas coisas começam — uma atitude perante o sistema do Universo, que se revelasse portuguesa inteiramente.
Com efeito, não há outro problema hoje de mais importância do que o de criar uma alma portuguesa. A antiga alma nacional, mesmo que ainda existisse, já não servia. E preciso, para que haja um Portugal Novo, haver uma Nova Alma Portuguesa. Para que possa haver uma política nacional, uma cultura nacional, qualquer coisa nacional, seja o que for, o primeiro passo a dar é espiritual, é criar aquela fonte nacional donde essas coisas todas, depois inevitavelmente partirão.
Ora o dever de todo o homem que representa qualquer coisa em Portugal, hoje, é o de, afastado de toda a malandragem que faz política, prestar o seu auxilio, pequeno que seja, a essa criação de Portugal. Eu não quero que o sr. preste o seu, ainda que (embora fosse tolice) não tosse crime pedir-lho. Quero apenas apontar-lhe este facto — que cada acto, cada gesto que um português hoje faça, e tenda a conservar, apoiar ou animar as forças dissolventes da nossa sociedade, que são os restos dos partidos monárquicos e quase todos os políticos republicanos, qualquer gesto, digo, que tenda a conferir a essa turba-multa de escrocs e de imbecis um milímetro espiritual de prestígio, não só vale pelo facto maléfico de prestar auxílio a gente inteiramente desprezível e antipatriótica (o que já de si é mau), mas pesa sobretudo porque contraria ou tende a contrariar a obscura acção daqueles que, por muito amar a Pátria, querem ter Pátria para amar. Isto, que aqui está, não é nada. Ponha no nosso passado olhos de homem que cumpriu o seu dever. Isto, que aí vê, satisfá-lo? Isto satisfaz alguém que não coma disto? Ou que não seja um pobre instrumento nas mãos dos políticos?
Peço-lhes apenas o silêncio. Deixe que as grandes forças ocultas da alma nacional lentamente se infiltrem. Bem sei que o sr. seria incapaz de as combater. Faço-lhe, sem mais pensar no caso, essa precipitada justiça. Mas auxiliar aquilo que cumpre destruir é prejudicar essa construção futura, porque é fortalecer aquilo que depois terá de ser destruído.
São estas algumas das considerações que, como representante duma das correntes intelectuais do país, julgo do meu dever fazer-lhe. Muitas outras há, porventura, que nesta ocasião devessem ser feitas; não as farei porque não vale a pena. E é quase insultuoso, desprimoroso, para um simples soldado estar-lhe dirigindo reflexões de ordem política e sociológica, onde ele nada percebe senão a superfície das palavras e a dispersa significação dos conceitos.
Permita que lhe renove o protesto da minha admiração pela sua valentia, e do meu desprezo pela sua precipitada estupidez. Ouso esperar que, quando os fumos da embriaguez popular lhe houverem passado, o seu espírito possa adquirir aquilo que, mais do que outra coisa importa que um homem tenha — a justa noção do lugar que ocupa na sociedade, e a compreensão apurada dos limites que esse lugar impõe à sua actividade. Deixe a política aos políticos; que faz o sr. entre eles senão trabalhar para desdouro do seu nome honrado? Deixe as opiniões sobre política aos sociólogos; que espera o sr. merecer deles, senão o desprezo, metendo-se a entendido em questões onde eles, estudiosos do assunto, tantas vezes hesitam e se não pronunciam?
Capitão Aragão: a disciplina é uma coisa mais importante que Vossa Heroicidade julga. Vai mais fundo, e é mais larga, que a mera arregimetação militar. Ela representa o equilíbrio e a lucidez no esforço, a noção que cada um deve ter do seu papel na sociedade, e do preciso valor que o seu feitio e competência têm na República.
Não sirva partidos políticos: eles não são mais que aquelas "quadrilhas de ladrões" de que José Dias Ferreira falava. Os tempos não mudaram, porque em cinco anos não se altera uma sociedade. O meio social é o mesmo, com a anarquia por cima; e por isso os vícios são os mesmos, com a indisciplina agravada e a confusão maior. Só com um lento trabalho, primeiro puramente intelectual e educativo, que vá entrando pouco a pouco, de cima, na sociedade, ela se pode transformar; só daqui a muitos anos (Deus sabe quantos!) pode haver realmente a república em Portugal, a decência na administração pública, a plena consciência portuguesa em Portugal. Tanto quanto em si caiba, não prejudique o trabalho de sapa intelectual daqueles que são mais portugueses que o sr., que sabem mais das coisas sociais ao que o sr., que visam muito mais altos, e muitos maiores destinos à sua Pátria, do que qualquer "vingança de Naulila" ou "simpatia pela causa dos aliados" ou outra qualquer sucata sociológica da loja de quinquilharia desta pré-república. Cale-se, e acorde, abra os olhos! Isto de Pátria não é coisa com que o sr. — que é um homem de coração e de pulso — possa estar a brincar, como se fosse um tranquiberneiro qualquer de qualquer dos partidos políticos.
Os gatunóides que têm andado a calabriar pela nossa administração pública não merecem duas palavras da sua estúpida mas honrada atenção ... (...)
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
- 85.«Carta a um herói estúpido»