[Prefácio a ACRÓNIOS, de Luís Pedro]
[Prefácio a ACRÓNIOS, de Luís Pedro]
O progresso da poesia, isto é, o das formas poéticas — pois da mesma poesia, que é a verdade viva, não pode haver progresso, nem Homero foi ainda superado — , obedece àquela dura lei a que todo progresso obedece; em outras palavras, é um caso particular de um fenómeno geral. Designa-se por progresso a aquisição de uma coisa que é uma vantagem social por meio da perda de outra coisa, que era uma vantagem social também. É caso típico o da formação da Europa moderna: surgiu através da criação, diversa e colorida, das nacionalidades distintas; resultou na perda do influxo romano e do uso universal da língua latina, pelos quais as nações da Europa tinham naturalmente a fraternidade que hoje se busca em vão, porque artificialmente.
As formas poéticas, adentro da nossa civilização — isto é, da Grécia até nós — , atravessaram três estádios distintos: o estádio quantitativo, da poesia grega e latina, em que o ritmo se fundava na quantidade das sílabas, pressupondo e exigindo uma exactidão e musicalidade de dicção e pronúncia que hoje nem sequer concebemos; o estádio silábico, em que o número das sílabas no verso, a acentuação, e artifícios como a rima e a estrofe rimada faziam por compensar a perda da antiga precisão quantitativa; o estádio rítmico, em que se não cura de quanto seja regra, ou o pareça, mas se reduz a poesia, tão-somente, a uma prosa com pausas artificiais, isto é, independentes das que são naturais em todo o discurso e nele se indicam pela pontuação.
Cada estádio, ou, antes, cada forma pela qual cada estádio se distingue, tem, como tudo, vantagens e desvantagens. A poesia quantitativa, apertadíssima, obrigava todavia a uma disciplina verbal de tal ordem que se reflectia no mesmo pensamento; por isso a poesia grega e latina é de uma notável clareza e limpidez. A poesia silábica, menos apertada, se dissolve a disciplina do pensamento, mantém, contudo a da emoção; é preciso sentir claro, por obscuro que se pense, para lançar equilibradamente o movimento estrófico, alinhando e rimando. A poesia rítmica nem disciplina a inteligência nem a emoção, a não ser que estas estejam disciplinadas em, e por, si mesmas; segue, porém, todos os movimentos do espírito, como a sombra os do corpo, mas, como esta, se nos não precavermos no onde estamos, com grandes e desmedidas distorções. A primeira estorva a emoção em proveito do pensamento; a segunda estorva o pensamento em proveito da emoção; a terceira a ambos estorva, ou tende a estorvar, em proveito do que, transcendendo pensamento e emoção, é a mesma individualidade.
É regra de toda a vida social que, quanto mais liberdade nos é dada, menos podemos dar a nós mesmos. Se me fecharem num subterrâneo, tenho liberdade de fazer muita coisa sem risco de cair do telhado abaixo. No telhado, em pleno ar livre, tenho que ver melhor onde ponho os pés. A vantagem e desvantagem da poesia rítmica, ou livre, é que ela exige de nós que nos disciplinemos com uma força e uma segurança que as poesias menos livres nos não exigiam, pois elas mesmas tinham em si com que disciplinar-nos. Isto é vantagem porque a disciplina assim adquirida é mais íntima e profunda; é desvantagem porque é muito mais difícil de adquirir.
Diz-se que todos os caminhos vão dar a Roma; mas, se assim é, alguns hão-de ir para lá muito tortos. Há dois caminhos direitos entre dois pontos: o que vai de um ponto ao outro em linha recta; e o que dá a volta ao mundo até chegar lá, em complemento da mesma linha. Figura o primeiro, no caso presente, a poesia livre; figura o segundo a poesia presa. O segundo é mais fácil, porque dá mais espaço para se dar por ele; o primeiro é mais difícil, porque temos que estar certos d esde o princípio.
Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.
- 193.1ª publ. in “Prefácio” a Acrónios . Luís Pedro. Lisboa: 1932.