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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Propriamente o seu gesto heróico não foi o gesto heróico de um mero soldado.

Propriamente o seu gesto heróico não foi o gesto heróico dum mero soldado. Quanto muito o sr. foi um sargento valente. Não se lhe pode dar maior categoria intelectual na valentia. O seu gesto não foi dum chefe, como parece ter sido o do tenente Marques, postergado pelo sr. por não pertencer ao partido democrático.

No fundo, aqui não há heroísmo nem patriotismo: há uma questão política, mais um dos estafados manejos espanhóis do nosso célebre partido democrático. O leopardo, diz-se em provérbio, não pode mudar as pintas. Os democráticos, também, não podem mudar de feitio.

O seu gesto foi heróico, mas não foi português. Nada há de português no seu gesto, porque nada pode haver de português nos gestos de quem não tem um conceito português da vida. Na acção militar de um Mousinho de Albuquerque (os seus manes que me desculpem a comparação consigo!) há uma certa lusitanidade, qualquer coisa de consciência de estar pertencendo a uma linhagem de heróis que outrora mandaram nos mares e se fizeram obedecer pelos ventos. E a carta ao Príncipe Real, publicada, morto já Mousinho, pelo cuidado amigo do sr. (...) Gaivão, revela plenamente que o aprisionador do Gungunhana tinha um conceito português da vida. Conceito espantosamente medieval, é certo, monárquico duma maneira estranha nesta época oca de lealismos; mas, sem dúvida possível, um conceito português da vida e das coisas, tradicionalista até ao delírio. Estava no passado aquela alma heróica, mas estava no passado em Portugal. A sua alma onde é que está? Com quem está? Nem o sr. o sabe. O sr. diz que tem consciência de ter cumprido o seu dever. Qual era, afinal, o dever que o sr . tinha de cumprir? O de se bater pela Pátria? Decerto que o cumpriu. O de, como militar, se bater até à última? Parece tê-lo cumprido. Mas o seu dever de chefe, porque o sr. é um oficial e não um sargento ou um cabo; o seu dever de, por oficial, representante duma aristocracia portuguesa? Esse dever, cumpriu-o? Seria ironia imperdoável da minha parte querer pretender que o sr. o cumpriu.

Ora, desde que o dever por si cumprido não passou do dever do soldado, do mero soldado, cumpria-lhe continuar nessa linha de conduta, que pode comportar nobreza e altivez, mas que só as comporta pelo escrúpulo no silêncio e na modéstia. O sr., porém, ousou mostrar opiniões políticas, manifestar adesão a uma corrente política. Isto é, tendo cumprido um dever de mero soldado, o sr. passou a emitir opiniões que competem apenas a um oficial. Isto é que não pode ser, não tem jeito, não se lhe pode admitir. Talvez a consciência disso lhe ditasse esse justo gesto de não querer aceitar a sua promoção. Com o seu gesto concordarão todos, não porque ele seja modesto, mas porque é lógico. O seu gesto, não pede promoção, pede louvor; não requer eminência, mas recompensa.

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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«Carta a um herói estúpido».