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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

A PARTIDA [c]

A PARTIDA

E eu o complexo, eu o numeroso,

Eu a saturnália de todas as possibilidades,

Eu o quebrar do dique de todas as personalizações,

Eu o excessivo, eu o sucessivo, eu o (...)

Eu o prolixo até de continências e paragens,

Eu que tenho vivido através do meu sangue e dos meus nervos

Todas as sensibilidades correspondentes a rodas as metafísicas

Que tenho desembarcado em todos os portos da alma,

Passado em aeroplano sobre todas as terras do espírito,

Eu o explorador de todos os sertões do raciocínio,

O (...)

O criador de Weltanschauungen,

Pródigo semeador pela minha própria indiferença

De correntes de moderno todas diferentes

Todas no momento em que são concebidas verdades

Todas pessoas diferentes, todas eu-próprio apenas —

Eu morrerei assim? Não: o universo é grande

E tem possibilidade de coisas infinitas acontecerem.

Não: tudo é melhor e maior que nós o pensamos

E a morte revelará coisas absolutamente inéditas...

Deus será mais contente.

Salve, ó novas coisas, a acontecer-me quando eu morrer,

Nova mobilidade do universo a despontar no meu horizonte

Quando definitivamente

Como um vapor largando do cais para longa viagem,

Com a banda de bordo a tocar o hino nacional da Alma

Eu largado para X, perturbado pela partida

Mas cheio da vaga esperança ignorante dos emigrantes,

Cheio de fé no Novo, de Crença limpa no Ultramar,

Eia — por aí fora, por esses mares internado,

À busca do meu futuro — nas terras, lagos e rios

Que ligam a redondeza da terra — todo o Universo —

Que oscila à vista. Eia por aí fora...

Ave atque vale, ó prodigioso Universo...

Haverá primeiro

Uma grande aceleração das sensações, um (...)

Com grandes dérapages nas estradas da minha consciência,

(...)

(E até à aterissage final do meu aero (...) )

Uma grande conglobação das sensações incontíguas,

Veloz silvo voraz do espaço entre a alma e Deus

Do meu (...)

Os meus estados de alma, de sucessivos, tornar-se-ão simultâneos,

Toda a minha individualidade se amarrotará num só ponto,

E quando, prestes a partir,

Tudo quanto vivo, e o que viverei para além do mundo,

Será fundido num só conjunto homogéneo e incandescente

E com um tal aumentar do ruído dos motores

Que se torna um ruído já não férreo, mas apenas abstracto,

Irei num silvo de sonho de velocidade pelo Incógnito fora

Deixando prados, paisagens, vilas dos dois lados

E cada vez mais no confim, nos longes do cognoscível,

Sulco de movimento no estaleiro das coisas,

Nova espécie de eternidade dinâmica ondeando através da eternidade estática —

s-s-s-ss-sss

z-z-z-z-z-z automóvel divino

s.d.

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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