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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O sr. não se bateu pela Pátria.

O sr. não se bateu pela Pátria. Não se podia bater pela Pátria, porque não tem Pátria por que se bater. Não me refiro agora, já, à circunstância de o sr., não tendo um conceito português da vida, não poder ser, por isso, considerado português. Refiro a outra, e mais grave, circunstância, com a qual o sr. nada tem. Refiro-me ao facto de que nenhum de nós tem Pátria. O português é hoje um expatriado no seu próprio país. Somos uma nação, não uma pátria; somos um agregado humano sem aquela alma colectiva que constitui uma Pátria. Somos... Sei lá o que nós somos? sabe alguém o que nos somos, salvo o lugar por onde um cataclismo vai passar (...)

Com efeito, porque somos nós uma Pátria; antes, quero dizer, porque o não somos nós? Sabe o que é uma Pátria? Não espere que eu venha fazer lirismos: pergunto, concretamente e en sociologue , o que vem a ser uma Pátria? Uma de duas coisas, e nenhuma terceira: um conjunto humano tornando consciência de si-próprio como diferente de outros conjuntos. De que modo pode esse conjunto humano ter essa especial consciência de si próprio? De uma de duas maneiras, e de nenhuma outra maneira. Ou tem essa consciência pela continuidade de vida nacional, pela consciência das tradições especiais que fazem esse conjunto tal e não tal outro: e esta é a maneira tradicionalista de ser uma Pátria: ou tem essa consciência através de ter criado um novo conceito de vida, da sociedade, do mundo, que lhe é próprio, que se distingue dos outros conceitos de vida, w eltanschaaungen, dos outros países, quer eles os tenham — aos deles — por tradição, quer, também por criação recente. Eu explico melhor. Quando os filósofos e literatos alemães do fim do séc. XVIII e princípios do séc. XIX ergueram aquele monumento artístico e filosófico de onde saiu a geração de criadores que causou a Alemanha actual, essa gente ergueu, no seio da Alemanha, um novo conceito inteiramente novo das coisas — conceito inteiramente novo que, por ter nascido na Alemanha, se mostrou Alemão. Na impossibilidade de reatar as tradições germânicas, criaram uma Alemanha nova. Ali aí está nos seus resultados, e eu quero crer que o sr., apesar de herói e coisas anexas, terá a suficiente lucidez para confessar que é uma coisa razoavelmente forte e grande. Isto é o exemplo do conceito antitradicionalista de Pátria. Pessoalmente, adiro a este conceito; julgo inútil e mesquinha a cura escrupulosa de seguir as tradições. O Portugal das descobertas não seguiu tradição nenhuma: criou-se.

Repare agora para o momento português actual. Qual das duas coisas lhe aparece aí a denunciar-lhe que Portugal é uma Pátria? Quebrámos com todas as tradições; até aqui nada há de mau. Resta saber se lhes substituímos qualquer coisa nova que seja de criação portuguesa. É assim? Qual é essa coisa? Os princípios em que assenta esta coisa a que se chama a República Portuguesa. Esses princípios são franceses. São tudo menos nacionais. Que diabo!, não é preciso ver muito pela história fora para perceber isso. Mais nos valera uma experiência fenomenalmente absurda no campo social ou institucional, mas que fosse nossa, que fosse originaria de aqui, que, portanto, tivesse o poder patriótico, ou patriotizante, de nos distinguir dos outros países. Mas não há nada disto. Não há Portugal: há uma mistura ignóbil de "estrangeiros do interior" (como com razão, se bem que de outro ponto de vista, se lhes chamou) a governar-nos e a estropiar-nos o resto do que somos.

Entre outras coisas o sr, deve ter ouvido chamar traidor a Paiva Couceiro. Deve também ter ouvido denunciar e conspurcar uma frase, que se atribui aos nossos monárquicos, de que "antes Afonso XIII que Afonso Costa". Quero fazer — não propriamente a defesa — mas a explicação destas duas coisas — da atitude de Couceiro e a da frase atribuída aos monárquicos. As considerações, que acabo de exarar, devem dar-lhe a intuição de como essa defesa pode ser feita.

Paiva Couceiro é um espírito ferrenhamente tradicionalista. Podemos não concordar — já disse que não concordo — com esse conceito tradicionalista. Mas ele é sem dúvida um conceito de nacionalidade. É preferível a conceito nenhum. Dentro do tradicionalismo pode haver patriotismo; fora dele, e não havendo a criação de novos ideais absolutamente nacionais, não vejo que patriotismo possa haver. Paiva Couceiro viu erguer-se uma instituição, a que alguns maduros e um grande número de gatunos chamaram "a nossa querida República" — e deve ter sentido, senão o pensou lucidamente — que essa instituição vinha arrancar tudo quanto restava — e não era muito — das tradições nacionais, sem lhes substituir absolutamente nada que mostrasse que era uma república portuguesa. Couceiro viu, ou deve ter sentido, que tal República, ou que quer que fosse, representava, nessas condições um atentado contra a Pátria. Era um factor de dissolução nacional. Não agia senão destrutivamente sobre quanto se pudesse considerar como energizador das almas portuguesas, ermo congregador das almas portuguesas numa única lusitana. Por isso o tradicionalista Paiva Couceiro sentiu a necessidade de conspirar. Ele foi sempre um grande soldado e um grande patriota; continuou sendo o mesmo soldado e o mesmo patriota. A sua superioridade moral sobre os estrangeiros da nossa República é incomensurável. No seu tradicionalismo exaltado, ele é, apesar de tudo, um português. Eles não são nada, nada, nada. Estrangeiros, e estrangeiros estúpidos; que nem sequer vieram trazer à administração pública aquela honestidade cuja ausência na monarquia lhes serviu de trampolim para as campanhas oposicionistas. A monarquia portuguesa, é certo, era um regime de ladrões e incompetentes. Mas era um regime que estava cá há oito séculos, que, pelo menos exteriormente. estava identificado se não com a nacionalidade, pelo menos com a existência ostensiva da nacionalidade. Substituí-lo por um regime que, além de não ser nacional de modo nenhum, continuava as mesmas tradições (estas sim!) de gatunagem e de incompetência., agravando, se talvez não a gatunagem, por certo que a incompetência — eis uma coisa para que não valia a pena ter derramado sangue, perturbado a vida portuguesa, criado maior soma de desprezos por nós do que os que já havia no estrangeiro.

Não concordo, talvez, nem com uma única das ideias que formam a base do conceito português da vida que Couceiro tem. Mas reconheço nele um português. Como português, não posso deixar de, por isso, simpatizar com ele. Nem por sombras me ocorre que possa haver comparação entre a sua atitude — se bem que, para mim, errónea — e a estrangeirada atitude a que estes bandalhos da República chamam "patriotismo".

Quanto à frase, ou expressão de desejo, que "antes Afonso XIII do que Afonso Costa", se a acho (seja ela de quem for) absurda e abjecta, confesso que a compreendo, que compreendo que se houvesse emitido. Aqui como no caso de Couceiro — os conceitos, que expus, acerca do que constitui uma Pátria devem auxiliá-lo a compreender também. O domínio espanhol significaria uma grande desgraça, uma grande vergonha, e um grande desastre nacional. Era a perda da nossa independência — não é assim? — o arrazamento da nossa Pátria? Mas que diabo é isto em que vivemos? Vivemos como portugueses? Como vivemos, se não somos governados por homens orientados portuguesmente? como, se são estrangeiras as ideias que nos "orientam"? como? se de independência nacional temos apenas o nome e o espectro da coisa? Para que serve uma independência nacional, se não é para se viver nacionalmente? Que diabo de independência nacional tem um desgraçado país que é internacionalmente um feudo da Inglaterra, que é nacionalmente um feudo do anti-português Afonso Costa? Se a perda declarada da nossa independência seria (e sê-lo-ia) uma desgraça e uma vergonha, em que é (salvo na absoluta evidência exterior) menos vergonha e menos desgraça a triste situação em que estamos? Um Portugal onde internacionalmente só se pode ser inglês; onde nacionalmente só se pode ser francês (pois que francesas sejam as ideias republicanas que nos "governam") — um Portugal onde, portanto, tudo se pode ser ("tudo" é um modo de falar) menos português, que espécie de "Portugal independente" é que é? Que independência há nisto? Triste gente que se contenta com a triste aparência das coisas, e não vê um palmo adiante das sensações quotidianas, para dentro da sua alma súbdita e oprimida!

Há mais ainda. Estas ideias estrangeiras que hoje formam a fórmula pseudogovernativa da nossa sociedade, são, além de estrangeiras, revolucionárias; isto é, trazem consigo um duplo poder de desintegração social. Dificilmente se concebe um mais desgraçado estado nacional.

É este o estado do país a que o sr., coberto de certa glória, regressa. São estes os homens a que o sr. vem dar o apoio da sua voz. Está contente? Sente-se português? Para que lhe pergunto eu isto? Estas perguntas, afinal, têm mais que uma colocação retórica no discurso?

A estes inimigos internos da sua Pátria vem o sr. trazer o auxílio do algum prestígio que alcançou. Nesse caso vá mais longe. O sr. será um herói, mas é também um mau patriota e um mau português. Será um soldado valente, mas é também um parvo.

Afinal para que lhe estou eu dizendo isto? Para que serve dizer isto, explicá-lo, raciociná-lo, quando sem dúvida toda essa chinfrineira de celebridade feita em seu torno não obedece senão a qualquer plano do partido democrático? Porque, no fundo disto tudo, a única realidade é o Costa. Sim, aqui, na realidade real, não há o sr., nem o seu heroísmo, nem Naulila, nem alemães, nem coisa nenhuma. Há o Costa e o seu partido. E se lhe tenho chamado — ao sr. — parvo e estúpido durante o decurso desta carta, compreende bem que é porque, supondo-o um homem de coração e um patriota, o considero apenas como inconscientemente servindo interesses políticos que, no fundo, são da mais escura espécie, e, no melhor, não são mais que interesses eleitorais e governativos. Limito-me ao conceito fácil de que o sr. é estúpido, porque não posso admitir que um homem que se bateu heroicamente, que cumpriu o seu dever nas linhas de fogo, que se viu frente a frente com as realidades fundamentais da vida — a morte, a guerra e a Pátria — venha, de consciência lúcida e caso pensado, servir os interesses baixos e reles dum partido de arruaceiros e de gatunos. Não creio que o sr. tivesse pensado bem que a sua voz ia ser uma espécie de defesa de Ambaca, das bínubas, das minas da Panasqueira., (...) — de todo esse rosário ateu de escândalos e de traições que constitui os serviços que o partido democrático tem prestado... à Espanha.

Espanhóis do interior — é o que são esses homens em cujo proveito se ergueu um momento da sua voz. Traidores por temperamento e quotidiano gesto — eis do que não passam os indivíduos de forma humana que a sua glória vem servir e o seu nome prestigiar. Bem precisados de prestígio — na verdade — estão eles! Mas não há ninguém que lhes possa dar prestígio. Se eles conseguissem erguer do túmulo Nuno Álvares, o Infante D. Henrique e Afonso de Albuquerque, e os conseguissem inscrever no Centro da Rua Ivens, o que resultaria era um grande desprestígio para esses vultos da nossa história. Moralmente já nada salva aquela caranguejola de patifes. Oxalá, moral ou fisicamente, haja alguma coisa que salve isto!

Enfim... Enfim...

Mas não é verdade que é duro chegar-se a este ponto? Não é verdade que dói e envergonha um português ver que a este ponto se chega?

Naulilas, cativeiros, regresso, vivas, heroísmos, promoções... E no fundo disto tudo não haver outra realidade senão uma manobra eleitoral do partido democrático!

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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«Carta a um herói estúpido»