[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues - 4 Set. 1916]
Lisboa, 4 de Setembro de 1916.
Meu querido Côrtes-Rodrigues:
Se v. tem estado desterrado, eu sem desterro também o tenho estado. V. não imagina! Tenho passado estes últimos meses a passar estes últimos meses. Mais nada,
e uma muralha de tédio com cacos de raiva em cima. Agora estou numa fase melhor, com episódicas antemanhãs de seu-eu-verdadeiramente. Uma longa história de Depressão, com detalhes lentes-de-aumentar vindas do Exterior ... Enfim...
Não me sobra o tempo para lhe relatar porque gradações de mim-e-as-coisas se me infiltrou este mal-de-viver. Mas alguns factos marcam estádios na minha depressão: uma grave doença de minha mãe, que a levou até à possibilidade da morte, mas de que hoje, felizmente, parece estar de todo salva; o suicídio do Sá-Carneiro; a loucura do Cunha Dias (um rapaz meu antigo amigo, muito falador e vivo, que v. várias vezes deve ter visto na Brasileira) — tudo isto e eu... Intercaladamente, várias coisas de menor importância, mas adquirindo relevo por eu estar com relevo para as sentir; fenómenos nem-bons-nem-maus, mas ao princípio perturbadores, como o aparecimento em mim de fenómenos de mediumnidade... Isto tudo e a Vida ...
De modo que as únicas notícias que lhe posso dar de mim é que não, mas agora melhor. (A frase é exactamente assim, por o meu privilégio de não me exprimir).
Estou agora saindo de um período de esterilidade literária quase total, período que tem durado muito. Estou-me reconstruindo. Quando tornar a escrever-lhe — o que será para a outra mala — espero poder dar-me por RECONSTRUÍDO EM SETEMBRO DE 1916. Além disso, vou fazer uma grande alteração na minha vida: vou tirar o acento circunflexo do meu apelido. Como (nas circunstâncias adiante indicadas) vou publicar umas coisas em inglês, acho melhor desadaptar-me do inútil, que prejudica o nome cosmopolitamente.
Vai sair Orpheu 3. É aí que, no fim do número, publico dois poemas ingleses meus, muito indecentes, e, portanto, impublicáveis em Inglaterra. Outra colaboração do número: Versos do Camilo Pessanha (a propósito; «não cite isto a ninguém»), versos inéditos do Sá-Carrneiro, A Cena do Ódio do Almada Negreiros que está actualmente homem de génio em absoluto, uma das grandes sensibilidades da literatura moderna, prosa do Albino de Meneses (não sei se v. conhece) e, talvez, do Carlos Parreira, e uma colaboração variada do meu velho e infeliz amigo Álvaro de Campos.
Orpheu 3 trará, também, quatro hors-textes do mais célebre pintor avançado português — Amadeu de Sousa Cardoso.
A revista deve sair por fins do mês presente. Para a mala que vem já lhe poderei dar notícias mais detalhadas.
Agora vou responder aos pontos da sua carta que têm resposta:
O que se tem publicado, de interesse para v., tirando o «Manifesto anti-Dantas» do Almada, é:
Luz Poeirenta, de Silva Tavares. (Livro inteiramente sensacionalista, tanto que é dedicado à minha pessoa);
Praias do Mistério, de Augusto de Santa-Rita. (Este deve já v. saber o que é, pois sem dúvida o autor já lho terá mandado);
e não me lembro de mais nada.
Mando-lhe por este correio um exemplar suplementar que aqui tinha do «Manifesto anti-Dantas».
Quanto ao livro do Raúl Leal, v., evidentemente, só pode aludir a um volume intitulado A Liberdade Transcendente, que ele publicou há uns anos; não sei onde arranjar esse livro, mas tratarei de fazer o que possa para lho conseguir.
O Leal está em Madrid em muito mau estado mental. Tentou há meses suicidar-se, atirando-se para debaixo de um automóvel. Mas escapou, mesmo sem contusões, porque o chauffeur desviou o carro. Agora sei que pensa em se ir alistar como voluntário no exército francês; mas há tempos que não tenho notícias dele.
Bem. Isto já é ter-lhe escrito alguma coisa. Escreva v. também.
Apresente os meus cumprimentos a seu Pai, e sinta-se abraçado pelo seu muito amigo e dedicado
Fernando Pessoa
Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues.
(Introdução de Joel Serrão.)Lisboa: Confluência, 1944 (3.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1985
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