O proletariado organiza-se
O proletariado organiza-se. Inaugurou-se há dias, em Lisboa, a Associação de Classe dos Monárquicos.
Os operários manuelistas merecem-me a mesma simpatia e consideração que os outros sempre me mereceram; e seria, da minha parte, tão cruel como indelicado fazer referências menos bondosas a quem procura ganhar honradamente a vida e, achando cheias as profissões usuais, se aproveita da necessidade de uma nova profissão, e por isso, por vezes, a exerce incompetentemente.
Quando surgiu a indústria automobilista, foi preciso criar a classe dos chauffeurs; ninguém, a não ser um ou outro atropelado mais plebeu, se revoltaria decerto contra a imperícia inicial dos guiadores dos carros. Estavam aprendendo o ofício — o que é natural — e ganhando a sua vida — o que é respeitável. Depois ficaram sabendo da sua arte, e, embora a maioria continue guiando mal, o facto é que são chauffeurs definitivamente.
Ora o critério de humana tolerância que se aplica aos chauffeurs — como a todas as outras classes operárias que o progresso vai tornando precisas, triste seria que o não quiséssemos aplicar aos artistas monárquicos, excluindo-os assim, abusivamente, da grande família proletária, à qual tão dignamente pertencem.
A maior prova de falta de espírito humanitário seria notar-lhes os defeitos da obra, como se se tratasse de um operariado com tradições. Assim, o facto do Sr. Crispim, da Nação , nunca ter graça, não lhe deve ser levado a mal. Ele não a tem naturalmente. Também ninguém nasce chauffeur ou bailarino russo. Quem sabe o que a aplicação e boa vontade podem conseguir? Quem nos diz que não teremos um dia a surpresa do Sr. Crispim nos aparecer com espírito?
O que acontece com a graça do Sr. Crispim acontece também, é claro, com o talento do Sr. José de Arruela e a lógica do Sr. Cunha e Costa. E com respeito a esses outros artífices que se ocupam das partes mais técnicas da indústria monárquica, também o desalento me parece prematuro. É o caso, por exemplo, do meu amigo João do Amaral (não o especializo se não para o saudar), de qual — um santo rapaz, e até inteligente — vê-se que, como os outros, não está ainda à vontade na tecnologia da classe. Porque a gente vê que aquilo do El-Rei e Sumo Pontífice é ferramenta com que ainda não sabem lidar. Fica-nos sempre a impressão de que há peças que saltam no rodar daqueles engenhos lógicos, que há laqueios, folgas e outras coisas feias nestas engrenagens da dialéctica integralista.
Dos outros defeitos que a classe ostenta — a falta de cultura, a precipitação nas conclusões, a frequente grosseria nos ataques — seria quase ignóbil falar, dado que tais têm sempre sido, em toda a parte, as infelicidades de origem das agremiações plebeias.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
- 88.1ª publ.: “Crónicas da Vida que Passa” in O Jornal , nº 18, Lisboa, 21-4-1915