FRANCISCO — O conceito de tirania é de definição tão difícil...
Cinco Diálogos
FRANCISCO — O conceito de tirania é de definição tão difícil como qualquer outro conceito. Mas creio poder defini-lo assim:
sou vítima de tirania quando sou forçado a fazer qualquer coisa, a deixar de fazer qualquer coisa, ou a deixar fazer qualquer coisa, em virtude de um princípio exterior, que não aceito, e a submissão ao qual me não é proveitosa.
ANTÓNIO — Essa definição tem o ar de abranger coisas de mais.
FRANC.º — Vamos ver. Que a tirania consiste, essencialmente, no exercício de força sobre o tiranizado, não pode haver dúvida; nem a pode haver que o resultado do exercício dessa força é ou de o obrigar a fazer urna coisa, ou de o inibir de fazer urna coisa, ou de inibir de intervir para que uma coisa se não faça. É certo ou não?
ANT. º— É certo.
FRANC.º — Bem. Essa compulsão, de que o tiranizado é vítima, deve provir de um princípio exterior. Se, com uma aplicação forte da vontade, da minha própria vontade, me obrigo a um acto que me repugna, corno, por exemplo, trabalhar, ou me inibo de praticar um acto que me agradaria, como por exemplo, sair de dia, não sou tiranizado; porque de mim próprio parte a força que me obriga. Por isso é necessário, na tirania, que o princípio actuante seja exterior à vítima dela.
ANT.º — Bem.
FRANC.º — Sobre ser exterior, esse princípio deve não ser, ou não ter sido, aceite pelo tiranizado. Se, sendo católico, ou por herança que não rejeitei, ou por adesão que dei, me pesam as observâncias e os ditames da religião católica, não posso, em todo o caso, dar-me por vítima de uma tirania nisso, pois que, embora essa compulsão derive de um princípio exterior a mim, a esse princípio aceitei-o. Ele torna-se, por assim dizer, interior a mim, torna-se meu.
ANT.º—Justo.
FRANC.º — Finalmente, sobre ser exterior e não aceite por mim, o princípio da tirania deve ser exercido sem que vise a meu proveito pela compulsão a que me obriga. Este ponto da definição, que é o último, é muito importante. A compulsão legal, em vista da qual sou inibido de matar o próximo, supondo que tendo a fazê-lo, que nenhuma razão moral me inibe de o fazer, e que tal morte me é proveitosa, redunda em todo o caso em urna compulsão proveitosa para mim, pois a mesma lei que proíbe que eu mate, proíbe também que eu seja morto. Refiro-me, é claro, às leis dos países civilizados.
ANT.º— Sim, o raciocínio tem a vantagem de não morar em Portugal.
FRANC.º — Temos, pois, que a tirania é o exercício de força; de força para obrigar alguém a fazer, a não fazer ou a deixar fazer qualquer coisa; que é exercida em virtude de um princípio exterior ao indivíduo tiranizado; que esse princípio não é por ele aceite; e que da aplicação desse princípio nenhum beneficio, mediato ou imediato, para ele resulta. Defini?
ANT.º — Não sei.
FRANC.º — Mas que te parece sem que o saibas?
ANT.º— Que não esclareceste suficientemente o valor da palavra “princípio” nessa definição. Tu dizes: «força exercida em virtude de um princípio...» Que deve entender-se por esse “princípio”?
FRANC.º — Ah, eu explico... Com “princípio” quero simplesmente significar “origem de força”. Qualquer força é exercida em virtude de existir, antes de mais nada, e existe em virtude de ter uma razão para isso, boa ou má que seja. Ora eu, reflectindo que toda a razão de toda a existência é susceptível de receber uma base filosófica ou sociológica — falsa ou verdadeira que seja — escolhi a palavra “princípio” em vez da palavra “origem”, para indicar que, nas considerações que terei ocasião de te fazer, visarei, ao discutir as várias forças que se podem empregar como tiranias, a origem, ou “princípio” dessas forças... Compreendes?
ANT.º — Lamentavelmente. O erro capital de todas as definições perfeitas é a perfeição. Uma coisa perfeita deixa sempre suspeitas de não-existência. Espero que nas considerações com que me ameaças, não esquecerás discutir a tirania da perfeição. Não me refiro à que atormenta os artistas inferiores, porque essa é a tirania da imperfeição, mas à que atormenta os espíritos cândidos pelos assombrosos lapsos da matéria. Esta noite, por exemplo, é absolutamente desigual: vê, por isso, que perfeita. Nada lhe falta, nem o seu esta...
FRANC.º — Bem: Deixemos isso. Escuta agora bem. Determinado o conteúdo perfeito do termo “tirania”, quero agora determinar qual é a essência do princípio de tirania, isto é, o que é que há de comum a todas as forças que actuam, ou são capazes de actuar, no sentido de serem tirânicas.
ANT.º — Dize.
FRANC.º — A essência da tirania é a força que nos compele, e a força que nos compele, ou nos compele absolutamente ou relativa — isto é, condicionalmente. Quero dizer ou nos obriga absolutamente a fazer ou deixar de fazer urna coisa, sem que possamos tomar outro partido; ou nos obriga a fazer ou deixar de fazer uma coisa, castigando-nos ou sujeitando-nos a prejuízos e a males vários se tomamos outro partido. O assassino, que, encontrando-me, me desfeche em pleno coração um tiro certo, obriga-me a morrer; o indivíduo que, apontando-me urna pistola, me obrigue a assinar um documento que eu não quero assinar, não me obriga absolutamente a assiná-lo, mas obriga-me condicionalrnente, pois é, natural que eu prefira assiná-lo a receber o “castigo” da morte. É bom ver claramente estes detalhes simples e intuitivos: vendo-os, e notando-os, estaremos aptos a não perder pé no assunto.
«Ora tirania absoluta há só uma: a da Natureza. O indivíduo que me obriga a morrer por me dar um tiro no coração, não me obriga a morrer pelo facto de me dar um tiro, senão em virtude de, por disposição da Natureza, ser mortal um tiro no coração. Sendo o tiro efectivamente no coração, eu não tenho escolha entre morrer e não morrer: mas essa ausência de escolha não parte do indivíduo, mas da Natureza, que assim dispôs as coisas. Na tirania humana, de quem dificilmente se poderá escolher mais duro exemplo, que o outro que apontei, há sempre o elemento condicional. Tenho de escolher entre assinar o documento e morrer. Tenho a liberdade da escolha. Mas (e aqui é que o elemento tirânico se revela), qualquer das coisas que eu escolha é má para mim. Nessa escolha forçada entre um mal e o outro mal consiste a tirania.
»(A única tirania absoluta é a do Destino. A Natureza, a não ser para um pessimista, não é tirânica; e, se é tirânica para o pessimista, a tirania verdadeira está no Destino, que deu a esse homem o temperamento de pessimista. A Natureza, repito, não é tirânica. Suponha-se, por exemplo um indivíduo com tendências para bêbado, para amar excessivamente o álcool. Se cede ao prazer de beber, pagará com doenças e mal-estares. Mas o mal que lhe advém foi precedido de um prazer. Se se abstém de beber, não sofrerá, por essa causa, os tais males; de modo que, sacrificando um prazer, ganhou um bem. Não há aqui tirania, porque há compensação. Só o Destino, porque obriga absolutamente, pode ser tido por tirânico; porque a esse indivíduo, que usei para exemplo, ou o Destino o marcou para bêbado ou para não bêbado, e, em qualquer dos casos, o que ele escolhe já está escolhido.)
»Se a essência da tirania é a força, a primeira condição para se ser tirano é possuir força. Ora só há três formas de força: a força física, o número e a astúcia (...) ou habilidade. Assim, numa luta de rua, por exemplo, onde se suponha que os contendores são de igual valentia e denodo, um é vencido em virtude de o outro ou ser mais forte, ou vir em auxílio dele outro ou outros, ou ser mais hábil ou astuto na maneira de se bater. Mas uma coisa é evidente desde já: é que a astúcia ou habilidade não é força, mas apenas uma maneira de suprir a fraqueza ou de aumentar a força. E também é evidente que, para o caso de que trato — que é a tirania social — nada importa a força física directa. Por isso resta, como única força capaz de tiranizar, a força do número. Isto é, a essência da tirania é ser exercida por uma maioria. Em outras palavras, a tirania é democrática.
A. —Alto! Isso é bom de mais.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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