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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Ricardo Reis

Por isso, quando me declaro pagão, e amo a obra de Caeiro,

Por isso, quando me declaro pagão, e amo a obra de Caeiro, porque ela envolve uma reconstrução integral da essência do paganismo, eu não sobreponho a esse amor quaisquer esperanças no futuro. Não creio em uma paganização da Europa ou de qualquer outra sociedade. O paganismo morreu. O cristianismo, que por decadência e degeneração descende dele, substituiu-[o] definitivamente. Está envenenada para sempre a alma humana. Não há recurso ou apelo senão para a indiferença ou para o desdém, se valesse a pena o esforço doloroso de sinceramente desdenhar. A própria afirmação destes princípios, por inteiramente estéril, é escusada. Faço-a porque não podia evitar fazê-la ao prefaciar a obra de Caeiro. Poderia alargá-la muito mais, desdobrá-la, acumular argumentos que melhor a demonstrassem. Prefiro renunciar a fazê-lo.

Creio que o paganismo representa a mais verdadeira e a mais útil das fés; creio mesmo que não representa uma fé, mas uma visão intelectual da verdade. A civilização que ele criou soube ser, na perturbada Grécia política, o exemplar eterno da tranquilidade e da posse da vida, e, na Roma degenerada de nascença, ainda assim o maior edifício de disciplina social que foi imposto ao mundo. Com a vitória do cristianismo os poderes da sombra apoderaram-se da vida. A nossa civilização contém brilho, inteligência, força. Mas é feita por homens que as ideias arrastam, que não estão de posse das suas pessoas morais.

O facto, porém, é que essa civilização triunfou. No mistério dos seus desígnios os Deuses talvez saibam porquê. É possível, porém, que nem Eles próprios o saibam.

Ao pagão moderno, exilado e casual no meio de uma civilização inimiga, só pode convir uma das duas formas últimas da especulação pagã — ou o estoicismo, ou o epicurismo. Alberto Caeiro não foi nem um nem outro, porque foi o Paganismo Absoluto, sem ramificação ou intenção segunda. Por mim se em mim posso falar, quero ser ao mesmo tempo epicurista e estóico, certo que estou da inutilidade de toda a acção num mundo em que a acção está em erro, e de todo o pensamento, em que um mundo onde o modo de pensar se esqueceu.

Parecendo assim que não somos mais que degenerados filhos da civilização cristã, indiferentes por doença e por fastio, não o somos. Um destino misterioso nos deslocou. Como engenheiros que houvéssemos nascido nos sertões africanos, trazemos em nós capacidades que não podemos realizar, o esboço de um destino que não poderemos cumprir. O nosso espírito não tem pontos de contacto com esta endurecida e secular mentira do monoteísmo humanitário que caracteriza o cristianismo. Temos uma aversão por uma civilização tão falsa que lhe faltam os escravos, tão imperfeita que vive da subordinação da inteligência às emoções, e que, por mais que se pareça afastar da sua doença religiosa, mais tende para ela, porque mais se encaminha para aqueles delírios humanitários que distinguem a mentalidade dos escravos, e, onde o não faz, enquista na dureza absurda dos princípios queridos dos alemães, exagero dum paganismo falso — provando assim quanto a mentalidade civilizada se tornou incapaz de equilíbrio, de meio termo, de ponderação.

Mas estes «nós», em nome de quem falo, que pessoas são? Sei de mim, de Caeiro hoje morto, de mais dois em toda a extensão de gente que conheço. Que fosse só eu, e não importava. Que fossem mil, e era a mesma coisa. Aquele a quem uma vez os deuses concederam que visse a verdade das coisas na sua simplicidade irremediável não precisa senão da lucidez do espírito e da firmeza e insensibilidade do coração, incapaz que se torna de se comprazer nas saturnálias do humanitarismo e da vida moderna.

O resto jaz naquele ponto de luz a que chamamos Sombra, o grande Ponto anterior aos Deuses, para onde, na mortalidade absoluta absoluta das nossas almas, a nossa efémera vida inutilmente tende, inutilmente atinge, inutilmente para sempre permanece.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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Prefácio a Caeiro