O homem extraordinário, cujos poemas, não só inéditos,
O homem extraordinário, cujos poemas, não só inéditos, mas também insuspeitos [?] se coligem na presente edição, merece do público, que porventura o leia, um interesse que, podendo ser que ele lhe não dê sem esclarecimento prévio, desejo, nestas linhas de prefácio, indicar como, e porquê, merecido.
À primeira vista, a obra de Caeiro, aqui inteiramente coligida, não parece divergir, salvo em pontos secundários, das elocubrações métricas de tantos poetas nossos coevos, e um pouco anteriores, em quem o principal característico de inspiração é a indisciplina e o individualismo das sensações e dos sentimentos, e o mais patente distúrbio da dicção o caso libérrimo da linguagem, que, liberto não só da rima, como também dos ritmos tradicionais, se dá como seguindo o ritmo interior, a sequência desordenada da energia que surge no espírito.
Assim o americano Whitman, o belga Maeterlinck e, na nova [...]. Mas não há semelhança [...] entre Caeiro e estes.
A estes autores modernos convém aquela designação de sensacionistas, que alguns poetas do nosso Orpheu escolheram para designar(em)-se. São pessoas que não têm outro intuito artístico, que não o de exporem as suas sensações, e isto sem mesmo aquela disciplina rudimentar que deriva do emprego das formas convencionais da literatura em verso. Não têm a disciplina de uma teoria estética que transcenda os seus temperamentos, nem a de uma teoria religiosa cujos lemas excedam os seus caprichos, nem a de uma doutrina filosófica que, através das suas inteligências, subordine as suas sensibilidades.
A disciplina é sempre exterior, embora nem sempre aplicada de fora. As leis do meu temperamento nunca podem constituir uma disciplina minha. Uma disciplina é um princípio regrador da vida e da obra, que a inteligência aceita como verdadeira, e a sensibilidade aceita por boa. Sem a acção sobre tanto sensibilidade como inteligência, não há disciplina: se a inteligência aceita e a sensibilidade não, há um mero diletantismo; se o inverso, há um conflito esterilizante, anarquizador. Os românticos eram cristãos da sensibilidade e pagãos do pensamento; os neoclássicos eram cristãos do pensamento e pagãos na sensibilidade. Por isso a arte de uns e de outros resultou débil e, desde nada, caduca.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 380.Prefácio a Caeiro.