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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

FRANCISCO — O fenómeno aristocrático tem sido, sempre, mal compreendido,

Cinco Diálogos

FRANCISCO — O fenómeno aristocrático tem sido, sempre, mal compreendido, e, assim, as defesas, que há, do princípio aristocrático têm sido todas apoiadas em bases falsas. Têm escolhido razões de conveniência social, e razões de (...) para defender a existência de uma aristocracia. A verdade, porém, é que a legitimidade da aristocracia, ou das aristocracias, tem outro, e profundo, ponto de apoio. — A base das aristocracias é apenas a Sorte.

ANT.º —A sorte? Como, a sorte?

FRANCISCO — Eu explico. Há, evidentemente, três espécies de aristocracias — a que provém da hereditariedade, e consiste em vantagens de posição social, de poder, ou de dinheiro que o indivíduo tem simplesmente por ter nascido em tal família; a que provém directamente da natureza e consiste em um indivíduo nascer com mais inteligência, ou melhor senso moral, ou mais intensa força de vontade do que outro; e a que provém directamente da sorte, que provém de um indivíduo ser levado por caminhos na vida em que vence, ao passo que outros caem, a que faz com que a sorte grande saia a este e não àquele, a que, numa frente de batalha, estes sejam mortos, aqueles feridos, e escapem de todo os outros. Ora, no fundo, qual é a base da aristocracia, em todos estes casos, senão a sorte? Em que entra a minha vontade (supondo-lhe uma existência actuante e livre) para o que deriva da hereditariedade natural, que me dá o meu temperamento e o meu carácter, para o que deriva da minha hereditariedade social, que me dá a posição social, financeira, doméstica, de onde parti? Em que contribui a minha vontade, mesmo supondo-a livre, para os desastres que na vida me acontecem, para as doenças que tenho, para tanta e tanta coisa? Tudo é a sorte. A sorte é a base da aristocracia.

ANT.º — Não vejo que esse argumento, ou essa hipótese, possa deixar de servir a um democrata. Ele pode aceitá-la e continuar sendo democrata. Pode dizer, até: Bem, se tudo é sorte, deixemos tudo à sorte. Nivelemos os pontos de partida — isto é, eliminemos a hereditariedade social, como tu lhe chamaste — para que, partindo todos do mesmo ponto, fiquem entregues apenas à linha do seu destino.

FRANCISCO — Entendamo-nos. Em primeiro lugar, o teu hipotético democrata — supondo-o capaz de conceber um argumento desses — ainda pode ir mais longe... Pode dizer que, igualadas as condições de vida, cessando as diferenças excessivas, de algum modo isso se deve reflectir na própria hereditariedade natural, restringindo um pouco a variação. Mas todo esse argumento está errado. A democracia é uma tese tão falsa, que mesmo os argumentos, que os democratas não são capazes de ter, são fracos. O ponto é o seguinte. Não podendo a sorte ser eliminada do decurso da vida do indivíduo, tentemos eliminá-la do princípio da vida. A hereditariedade natural não está na nossa mão, mesmo supondo que possa ser atingida por uma transformação na hereditariedade social. O único ponto onde se concebe que possamos tocar é na sorte no princípio da vida. Como lhe poderemos tocar? O que é que se quer fazer? Fazer com que a sorte de cada indivíduo seja melhorada no princípio dessa vida — que ele parta de um ponto o menos desvantajoso possível. Nivelando todos — isto é, supondo que há maneira de se conseguir um mesmo ponto de partida para toda a gente — sucederá que, como não há igualdade natural nem do puro destino, este nivelamento

será em alguns casos um desnivelamento. Há indivíduos cuja utilidade social deriva de terem um ponto de partida favorável no seu destino; se esses tivessem o mesmo ponto de partida que os outros, teriam uma utilidade muito menor. E, mesmo, considerando a questão do ponto de vista do puro destino, temos que a hereditariedade natural e a social derivam do destino vital do pai e da mãe, de modo que o nivelamento projectado só serve para uma geração: a geração seguinte já estará desnivelada. — De modo que não podemos corrigir, ou tentar corrigir a desnivelação do destino pela igualdade. O que podemos é conceder a alguns indivíduos um ponto de partida melhor do que a outros: isto é, a maneira de condicionar e corrigir a desigualdade do Destino que é a aristocracia. A aristocracia, assim, surge-nos no seu verdadeiro aspecto — é uma libertação. A “sorte”, mesmo, é uma libertação. O privilégio é a única forma de liberdade possível no mundo; porque, sendo a liberdade absoluta impossível, a única liberdade possível é a isenção. O povo, modernamente, tomou sobre si o ser defensor do dogma cristão do livre-arbítrio; o povo medieval, mais são, compreendia a liberdade de outra maneira. E, assim, aquilo a que a gente medieva chamava liberdade era a isenção de qualquer coisa, um privilégio qualquer — o contrário do que modernamente se chama “liberdade”. Escolhendo libertar parte dos indivíduos, não podemos entregar essa escolha a nós mesmos, pois, como desconhecemos o destino futuro de cada um, ignoramos a quem deve ser dado um ponto de partida melhor. Entregamos isso, pois, à natureza, apoiando na hereditariedade natural a hereditariedade social. Isto é, fazendo com que as vantagens de ponto de partida de cada indivíduo derivem da situação paterna. Este critério determinista é aquele em que se apoia o aristocratismo. O espírito científico tem o seu primeiro progresso quando se aplica aos acontecimentos do mundo exterior, propriamente quase do mundo inorgânico (ou orgânico inferior) e elimina a noção de acaso, substituindo-a por a noção de lei natural. Atinge o segundo estádio do seu desenvolvimento quando torna a noção de lei extensiva aos fenómenos superorgânicos e elimina a noção de livre-arbítrio. Mas só chega à maioridade quando acaba por fim com a noção de acaso por completo, reconhecendo que nada na vida se furta à lei, que, assim como temos uma hereditariedade certa, temos um destino fatal — que desde a nascença está talhado para [:] em que ano, em que mês, em que dia e a que hora, em que casa, de que doença havemos de morrer. O determinismo é apenas a timidez do fatalismo. Todas as civilizações científicas — que são duas, a grega e a árabe — foram profundamente fatalistas. Não concordas com isto?

ANTÓNIO — Concordo. E um esplêndido prefácio para um Tratado de astrologia.

FRANCISCO — A Grécia e os Árabes foram os maiores astrólogos (porque dos Egípcios e dos Caldeus sabemos apenas que o foram). A ciência culmina na Astrologia. O auge da ciência é o reconhecimento de que nada existe fora da lei: que tudo vive no Destino. A ciência chegará à sua perfeição quando, conhecendo o determinismo como verdade, reconhecer a Astrologia corno ciência como só não reconhecem, aliás, os que nunca a estudaram detidamente, nem sabem que, se nela há erros, não são mais que os erros de diagnóstico na medicina, que ninguém nega que seja uma ciência, ou que tenha uma base científica.

1918?

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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«Cinco Diálogos sobre a Tirania»