Morto o autor destes poemas, e deixados eles ao abandono,
Morto o autor destes poemas, e deixados eles ao abandono, pediu-me aquela pessoa da sua família, que tomou sobre si o honesto encargo de os imprimir, que lhes pusesse aquele prefácio que só eu — escrevia — talvez lhes pudesse pôr. Grande fora a minha amizade, maior — porque maior pôde ser — a minha admiração pelo homem maravilhoso que criou estes poemas.
Mas não acedi ao convite que me fora feito sem que primeiro, a sós com a minha reflexão, vezes sobre vezes hesitasse sobre se devia aceitar.
A ter de escrever este prefácio eu tenho que dizer nele coisas de tal ordem que por certo parecerão aos leitores desproporcionadas e malcabidas. Falo de um desconhecido, prefacio poemas em todos os seus detalhes diferentes de quantos aqui se tenham escrito. E sem embargo, tenho que afirmar — porque outra coisa não posso afirmar — que estes poemas são os maiores que o século vinte tem produzido, que a visão filosófica que contêm não foi igualada por poeta algum moderno, recuando mesmo, neste juízo, até ao, fecundo, século anterior. Resume-se numa coisa, aparentemente muito simples, a obra de Alberto Caeiro — a reconstrução do sentimento pagão.
Quem, como eu, estudioso das coisas pagãs nas suas fontes e origens, não pode senão rir do pseudopaganismo com que tantos modernos têm tentado abrir a sua
carreira nas letras, quem, como eu, reconhece a inteira capacidade para compreender o paganismo, que existe naqueles — desde Chénier a Wilde — que mais presunçosamente quiseram dar-se por pagãos, pode afirmar bem que estes poemas contêm tudo o que o paganismo tinha de pagão. Mas não pode esperar que os outros o compreendam, porque ninguém hoje tem o sentimento do paganismo como ele foi. Têm alguns, quando muito, o sentimento do que o paganismo não foi.
Uma coisa é, por exemplo, a estatuária grega, outra coisa o espírito de que ela é um produto. Pode sentir-se a estatuária grega, podem amar-se os deuses helenos, sem que haja a mínima noção do espírito que representam. O exemplo de Óscar Wilde serve mais do que qualquer outro. Wilde amou sem dúvida ambas estas manifestações do antigo. Ninguém menos que Wilde sentiu ou soube o que era o paganismo. Wilde, e tantos outros, tomaram o epicurismo como o supremo característico do pagão, quando é o estoicismo que maximamente o representa. O paganismo era, em relação ao cristianismo, uma religião triste, sim, profundamente triste.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
- 334.Prefácio a Caeiro