A NOVA POESIA PORTUGUESA NO SEU ASPECTO PSICOLÓGICO
A NOVA POESIA PORTUGUESA NO SEU ASPECTO PSICOLÓGICO
I
Qualquer fenómeno literário — corrente, ou grupo, ou individualidade — é susceptível de ser considerado sob três aspectos e sob três aspectos tem de ser considerado para ser completamente compreendido. Esses três pontos de vista são o psicológico, o literário e o sociológico. Isto é, qualquer fenómeno da literatura tem de ser estudado — 1. °, em si, directamente como produto de alma ou de almas; 2. °, nas suas relações e filiação exclusivamente literárias, como produto literário; 3. °, na sua significação como produto social, como facto que se dá adentro de, e por, uma sociedade, explicado por ela e explicando-a, tido, pois, como indicador sociológico. No estudo — suponha-se — de uma qualquer corrente literária, importa pouco sob qual dos três aspectos primeiro a examinarmos, logo que sob todos os três aspectos sucessivamente e completamente o assunto se raciocine. Como fenómeno literário, como fenómeno psíquico, como fenómeno social, sucessivamente analisada, os três aspectos de uma corrente interexplicam-se e completam-se, fornece cada qual elementos especiais e essenciais para a interpretação sintética e integral da corrente. Nem o estudo total, nem qualquer dos estudos parciais, fica completo sem estarem completos, e coordenadamente completos, todos os três.
Por isso a nossa análise da actual corrente literária portuguesa — iniciada e feita sob o ponto de vista sociológico em dois anteriores artigos — só ficará completa e esses artigos em toda a sua extensão lógica compreensíveis, quando, neste escrito e em outro, juntarmos à análise sociológica uma dupla análise complementar, primeiro psicológica, e literária depois.
Começámos pela análise sociológica porquanto, sendo essa a mais envolventemente explicativa das três, de princípio ficava, posta ela inicialmente, abrangido em todo o seu valor e superfície o movimento literário estudado. Levou-nos essa análise sociológica a conclusões que não pareceriam estranhas, talvez, aos habituados a seguir raciocínios, mas que, ainda assim, eram de desorientar os de inteligência menos afeita a ler nas entrelinhas da concisão dialéctica. O nosso anterior estudo, partindo de uma análise dos períodos máximos das literaturas inglesa e francesa — tomados esses para exemplos — e da sua relação com as máximas, e — provou-se — homócronas épocas sociais, veio, por uma aproximação, detalhe a detalhe feita, a constatar a semelhança completa do nosso actual período, tomada a literatura como indicador sociológico, com aquelas grandes épocas, chamadas a depor, do mesmo representativo modo, as literaturas suas. Daí as naturais, referidas, conclusões sobre a vindoura grandeza lusitana. Esses detalhes, esses, por assim dizer, traços fisionómicos por onde a parecença entre os três períodos se colhia flagrante, eram do número, completo, de nove; três diziam respeito à relação entre os períodos literários máximos e as épocas políticas, ou antecedentes, ou contemporâneas ou subsequentes; e estes três pontos eram os exclusivamente sociológicos. Os outros seis, sumariamente então tratados, por não serem para sociologia puramente — referiam-se à originalidade, à elevação, e à grandeza dos representantes individuais dos períodos, e à nacionalidade, anti-tradicionalidade, e carácter não-popular dos mesmos.
Ficou, no artigo citado, esgotada e provada quanto possível — dada a juvenilidade da nossa actual corrente literária — a semelhança sociológica. Igualmente, no quarto capítulo, se provou que, constatadas que fossem a originalidade, a elevação e a grandeza de uma corrente literária, a sua anti-tradicionalidade ficava provada na sua originalidade — como seria original se se baseasse em tradições? — a sua não-popularidade provada na sua elevação — como ser popular sendo espiritualmente e metafisicamente complexa? — e, provado isto, de si ficava também provada a nacionalidade, o carácter nacional da corrente, visto que, como ali mais cingentemente provámos, originalidade absoluta só da alma de uma raça pode subir à tona da sua literatura. Poesia absolutamente original e poesia absolutamente nacional são expressões interconvertíveis.
Tudo está agora, portanto, em provar a originalidade, a elevação e a grandeza das figuras individuais. Compete isto em parte a uma análise psicológica, e em parte a um estudo literário. Da análise psicológica sairá caracterizada a corrente literária, e, assim sendo, a sua originalidade ou não-originalidade, a sua elevação ou não-elevação quedarão, ipso facto, em relevo — relevo que o estudo propriamente literário acentuará, rebuscando a filiação exclusivamente literária da corrente e a importância dessa filiação — se influência nítida e constante, como a do estilo francês dos séculos XVII e XVIII sobre as outras literaturas europeias; se mera ocasionação, mero ponto de partida, breve abandonado e excedido, como a da Renascença da Itália perante o estilo da época isabeliana em Inglaterra. — Esse mesmo estudo literário, analisando o grau da construtividade, de intensidade e de individualidade que se revelem nas obras da corrente, dirá da grandeza dos seus poetas.
II
Sabido que uma corrente literária é a expressão pela literatura de uma comum noção do mundo, da arte e da vida — posto de parte o que é individual, por individual precisamente — o estudo psicológico de qualquer corrente envolve o destrinçar-lhe na alma a sua tripla unidade de atitudes. Que três aspectos são esses do seu espírito uno? O primeiro é sua metafísica — isto é, o conceito do universo e das coisas que subjaz as manifestações dessa corrente. O segundo é a estética — curando bem que por isto se não quer dizer as suas teorias de arte (essas pertencem, como parte da sua teoria das coisas, à sua metafísica), mas o seu modo de ser literário, a sua alma literária. O terceiro é a sua sociologia, e isto significa as teorias sociais, 1.°, que constituem a aspiração da corrente; 2.°, que, determinando-se, se alteram, na fixação directa em estudos já extraliterários, propriamente sociológicos; e 3.°, que, encontrando-se com realidades sociais, se sintetizam, realizando-se numa nova fórmula vivida, perdendo ao realizar-se o que de impraticável tivessem. Claro está que a parte última deste estudo é puramente sociológica; mas isso inevitável, dado que uma corrente literária é basilarmente, e representativamente, uma corrente social; tanto assim que — como o temos indicado teoricamente já aqui, e praticamente na feição realizada do nosso anterior artigo — um estudo literário completo é, em grande parte — e máximo e ultimamente mesmo — um estudo sociológico.
Posto isto, encaremos a metodologia desta análise. O método analítico a empregar varia ligeiramente conforme qual dos três aspectos do psiquismo de uma corrente se investiga. Assim, ao determinar a estética da corrente, a análise incide directa sobre as obras dos poetas, porque estes, representando o máximo de emoção e de requinte revelador de expressão, mais do que os prosadores são representativos do momento-alma da raça e dos processos mentais que da inconsciência divina do povo sobem, feitos arte e consciência, para a interpretação estremecida dos seus versos. — Ao inquirir da metafísica, a análise divide-se entre as obras de arte — destacando sempre, por sua superior representatividade, os poetas — e as que dão expressão directa, racionada e intencionalmente filosófica, ao conceito do universo, característico do momento racial. Reportarmo-nos, nessa análise, só às obras metafísicas, ou apenas às obras literárias, seria — não diremos impossibilitar, mas por certo dificultar a investigação. É que — por estranho que de relance pareça — tanto o poeta como o filósofo ao interpretarem, cada um de seu modo, as intuições metafísicas de uma época, ao mesmo tempo as revelam e as escondem. Revelam-nas porque são poeta e filósofo, e, portanto, desdobradores em consciência e raciocínio do que a raça e a hora acumulam no fundo das suas almas. Escondem-nas — o poeta, porque a emoção, ainda que surgindo directamente do fundo intuitivo, é, de sua natureza, atraiçoadora da precisão intelectual; o filósofo, porque a actividade de raciocínio, vantajosa em tornar precisas as intuições fundamentais que a raça lhe dá, é, de seu carácter, destruidora dos processos emotivos que, eles só, surgindo directamente do fundo oculto da alma, podem conservar a essas intuições fundamentais a sua cor primitiva, o seu preciso tom intuicional. E, mais, tanto poeta como filósofo, sendo individualidades, acrescentam cada qual ao comum fundo de raça o seu especial temperamento, elemento esse que fatalmente desvirtuará uma interpretação exacta, superpessoal, do metafisismo da época. A alma de uma época está em todos os seus poetas e filósofos, e em nenhum; é por isso que é em todos e em nenhum que a nossa análise se encontra obrigada a procurá-la. — Semelhante método tem de ser aplicado no estudo da sociologia da corrente, mais complexo, porém, aqui, porque a três fontes, que não a duas, tem o raciocínio de ir beber. Os literatos, os filósofos e sociólogos-teoristas, e os acontecimentos finais e solucionais do período são essas três fontes. Como na nossa actual corrente não há, por ser ainda cedo, sociólogos-teoristas, e como os acontecimentos de criação social, que caracterizarão a época, só virão, como sempre, no fim do período, que ora avança apenas para o seu auge literário, releve-se-nos que não entremos em uma análise inutilmente extensa da forma como esta investigação deverá ser feita. Só temos um elemento — poetas — para essa dedução: veremos mais adiante o que, só com ele, se pode fazer, firmando-nos desde já na consciência de que essa dedução fatalmente será incompletíssima, uma simples intuição quase, um mero vislumbre de adivinhar.
Vejamos agora, reportando-nos à nossa já feita divisão dos máximos períodos em estádios, em que hora dos períodos temos de ir procurar esses poetas, esses filósofos que servem à nossa análise para nos revelar a alma da corrente. Verifica-se, sem dificuldade, que a estética de uma corrente fica determinada (é natural) quando, ao entrar no seu segundo estádio, ela atinge a sua capacidade máxima de expressão. É o estádio-Shakespeare no período inglês, o estádio-Hugo no da França, logo que fica formado o estilo de Shakespeare e o de Vítor Hugo. Atingida e fixada essa máxima capacidade de expressão, sucede um alargamento de ideação que pouco depois chega ao auge, coincidentemente, pouco mais ou menos com o meio do segundo estádio e estendendo-se até ao princípio do terceiro até que, variando, se prolonga por este dentro. É em coincidência com este auge ideativo da poesia que geralmente aparecem os filósofos do período. Quanto à sociologia da época, só nos poetas desde o auge ideativo do segundo, e pelo terceiro estádio, e nos filósofos e tratadistas do mesmo tempo se poderá trair, posteriores um pouco, porém, os tratadistas e os filósofos. Os poetas do princípio do estádio segundo só a um raciocínio muito pacientemente perscrutador de obscuras intuições inconscientemente proféticas poderão entre-sugerir uma ideia do género de essa futura realização social.
Como em anterior artigo mostrámos, a nova poesia portuguesa desde a «Oração à Luz» que entrou no segundo estádio. Podemos, portanto, arrancar-lhe o segredo da sua estética, nitidamente; com menos nitidez, e aproximadamente, entrever a sua metafísica: e, para que o estudo se não trunque, procurar dizer a cor dos longes vagos da sua sociologia ainda indecisos no horizonte da história.
III
Perscrutemos qual a estética da nova poesia portuguesa.
A primeira constatação analítica que o raciocínio faz ante a nossa poesia de hoje é que o seu arcaboiço espiritual é composto de três elementos — vago, subtileza e complexidade. São vagas, subtis e complexas as expressões características do seu verso, e a sua ideação é, portanto, do mesmo triplo carácter. Importa, porém, estabelecer, de modo absolutamente diferencial, a significação daqueles termos definidores. Ideação vaga é coisa que é escusado definir de exaustivamente explicante que é de per si o mero adjectivo; urge, ainda assim, que se observe que ideação vaga não implica necessariamente ideação confusa, ou confusamente expressa (o que aliás redunda, feita uma funda análise psicológica, precisamente no mesmo). Implica simplesmente uma ideação que tem o que é vago ou indefinido por constante objecto e assunto, ainda que nitidamente o exprima ou definidamente o trate; sendo contudo evidente que quanto menos nitidamente o trate ou exprima mais classificável de vaga se tornará. Uma ideação obscura é, pelo contrário, apenas uma ideação fraca ou doentia. Vaga sem ser obscura é a ideação da nossa actual poesia; vaga e frequentemente — quase caracteristicamente obscura é do simbolismo francês, cujo carácter patológico mais adiante explicaremos. — Por ideação subtil entendemos aquela que traduz uma sensação simples por uma expressão que a torna vivida, minuciosa, detalhada — mas detalhada não em elementos exteriores, de contornos ou outros, mas em elementos interiores, sensações — sem contudo lhe acrescentar elemento que se não encontre na directa sensação inicial. Assim Albert Samain, quando diz
Je ne dis rien, et tu m'écoutes
Sous tes immobiles cheveux,
desdobra a sensação directa de um silêncio à deux, opressivo e nocturno, na tripla sensação de silêncio, de almas que falam nesse silêncio, e da imobilidade dos corpos, mas não dá outra impressão do que a, intensa, desse silêncio. Do mesmo modo, nos versos de Mário Beirão
Charcos onde um torpor, vitreo torpor, se esquece,
Nuvens roçando a areia, os longes baços...
Paisagem como alguém que, ermo de amor se desse,
Corpo que estagna frio a beijos ou a abraços,
há simplesmente um desdobrar, como em leque, de uma sensação crepuscular, que cada termo maravilhosamente intensifica, mas não alarga. Finalmente, entendemos por ideação complexa a que traduz uma impressão ou sensação simples por uma expressão que a complica acrescentando-lhe um elemento explicativo, que, extraído dela, lhe dá um novo sentido. A expressão subtil intensifica, torna mais nítido; a expressão completa dilata, torna maior. A ideação subtil envolve ou uma directa intelectualização de uma ideia ou uma directa emocionalização de uma emoção: daí o ficarem mais nítidas, a ideia por mais ideia, a emoção por mais emoção. A ideação complexa supõe sempre ou uma intelectualização de uma emoção, ou uma emocionalização de uma ideia: é desta heterogeneidade que a complexidade lhe vem. São de ideação complexa, por exemplo, os versos de Mário Beirão
A boca, em morte e mármore esculpida,
Sonha com as palavras que não diz;
de Teixeira de Pascoaes
A folha que tombava
Era alma que subia;
e expressões como choupos d'alma de Jaime Cortesão ou o ungido de universo de Guerra Junqueiro.
Feita esta constatação, que nos leva ela a concluir? Subtileza e complexidade ideativas vêm a ser, como da anterior exposição se depreende, modos analíticos da ideação: desdobrar uma sensação em outras — subtileza — é acto analítico, e acto analítico, ainda mais profundo, o de tomar uma sensação simples complexa por elementos espiritualizantes nela própria encontrados. Ora a análise de sensações e de ideias é o característico principal de uma vida interior. A poesia de que se trata é, portanto, uma poesia de vida interior, uma poesia de alma, uma poesia subjectiva. Será então uma nova espécie de simbolismo? Não é: é muito mais. Tem, de facto, de comum com o simbolismo o ser uma poesia subjectiva; mas, ao passo que o simbolismo é, não só exclusivamente subjectivo, mas incompletamente subjectivo também, a nossa poesia nova é completamente subjectiva e mais do que subjectiva. O simbolismo é vago e subtil; complexo, porém, não é. É-o a nossa actual poesia; é, por sinal a poesia mais espiritualmente complexa que tem havido, excedendo, e de muito, a única outra poesia realmente complexa — a da Renascença, e, muito especialmente, do período isabeliano inglês. O característico principal da ideação complexa — o encontrar em tudo um além — é justamente a mais notável e original feição da nova poesia portuguesa.
Mas a nossa poesia de hoje é, como acima dissemos, mais do que subjectiva. Absolutamente subjectivo é o simbolismo: daí o seu desequilíbrio, daí o seu carácter degenerativo, há muito notado por Nordau. A nova poesia portuguesa, porém, apesar de mostrar todos os característicos da poesia de alma, preocupa-se constantemente com a natureza, quase exclusivamente, mesmo, na natureza se inspira. Por isso dizemos que ela é também uma poesia objectiva. Quais são os característicos psíquicos da poesia objectiva? Fácil é apontá-los. São três, e a sua diferença dos característicos da poesia de alma assenta sobre isto — que, ao passo que a observação da alma implica análise, a da natureza, a do exterior, envolve síntese, visto que qualquer impressão do exterior é sempre uma síntese, e uma síntese complexa, de impressões secundárias, memórias, e obscuras e instantâneas associações de ideias. São três, dizíamos, os característicos da poesia objectiva. O primeiro é a nitidez, revelada na forma ideativa do epigrama, chamando assim, convenientemente, à frase sintética, vincante, concisa: quando, exemplificando, dissermos que o tipo da poesia objectiva, apenas epigramática, é a dos séculos XVII e XVIII, em França especial e originantemente, teremos dado ideia clara do que por nitidez e epigrama no caso presente entendemos. O epigrama, porém, subjaz, como forma ideativa, toda a poesia do exterior, assim como o seu contrário, o vago, é base de toda a poesia contrária, a de alma. Epigramática como nenhuma é a poesia de Vítor Hugo, que é muito mais do que epigramática. Epigramática é — e este ponto é que urge notar — a nossa actual poesia, e por ser, ao mesmo tempo vaga e epigramática é que ela é grandemente, magnificamente equilibrada. A frase choupos d'alma, por exemplo, sendo — como apontámos — complexa no que de poesia subjectiva, é epigramática no que de poesia objectiva; é mesmo tipicamente epigramática, com a sua forma sintética, de contraste. Da sua complexidade íntima vem a sua beleza espiritual; do seu epigramatismo de forma nasce o seu perfeito equilíbrio e completa e perceptível beleza. Do mesmo são epigramáticas as frases citadas de Mário Beirão, o segundo trecho, e de Teixeira de Pascoaes. A actual poesia portuguesa possui, portanto, equilibrando-lhe a inigualada intensidade e profundeza espiritual, o epigramatismo sanificador da poesia objectiva. — Segundo característico da objectividade poética é aquilo a que podemos chamar a plasticidade; e entendemos por plasticidade a fixação expressiva do visto ou ouvido como exterior, não como sensação, mas como visão ou audição. Plástica neste sentido, foi toda a poesia grega e romana, plástica a poesia dos parnasianos, plástica (além de epigramática e mais) a de Vítor Hugo, plástica, de novo modo, a de Cesário Verde. A perfeição da poesia plástica consiste em dar a impressão exacta e nítida (sem ser exactamente epigramática) do exterior como exterior, o que não impede de, ao mesmo tempo, o dar como interior, como emocionado. É o que se dá nos quatro versos, em primeiro lugar citados, de Mário Beirão que a uma objectividade (plasticidade) perfeita unem uma perfeita subjectividade (subtileza). Outros exemplos se poderiam citar. Basta, porém, aquele que, por representativo, serve de prova de que a nossa actual poesia possui igualmente o segundo elemento característico da poesia objectiva; elemento esse que é mais um a equilibrar-lhe a profunda espiritualidade. — Mais um característico possui, e é o máximo, a poesia objectiva — é o a que poderemos chamar imaginação, tomando este termo no próximo sentido de pensar e sentir por imagens; e isto dá à poesia objectiva deste género, quando intensamente inspirada, uma rapidez e um deslumbramento que, em alto grau, entusiasmando, deixam, quando sem elemento de pura espiritualidade, uma inquietante impressão de grandeza oca. É o caso dos românticos todos e, maximamente de Vítor Hugo — é isto que, dissemos, ele tem além do epigramatismo e da plasticidade — e daí vem o fenómeno desse poeta dar a alguns uma impressão de desmedida grandeza, a outros de uma oca grandiosidade: cymbale lhe chamou, desdenhando, Renan, possuidor do vago tão desconhecido de Vítor Hugo. A este máximo grau de objectividade não subiu ainda a nova poesia portuguesa: prova-o ao ouvido o seu movimento geralmente lento, quando a imaginação imprime sempre ao verso uma rapidez inignorável. A «Oração à Luz», porém, obra máxima da nossa actual poesia, tem já vislumbres desse final elemento objectivo. A nossa poesia caminha para o seu auge: o grande Poeta proximamente vindouro, que incarnará esse auge, realizará o máximo equilíbrio da subjectividade e da objectividade. Diga da sua grandeza esta sugestão para raciocinadores. Super-Camões lhe chamámos, e lhe chamaremos, ainda que a comparação implícita, por muito que pareça favorecer, anteamesquinhe o seu génio, que será, não de grau superior, mas mesmo de ordem superior ao do nosso ainda-primeiro poeta.
Há mais uma observação a fazer para a completa caracterização psicológica da nossa nova poesia. Deduz-se do que se acha concluído acerca da plena e inigualada subjectividade e da quase-total objectividade dessa poesia. Resultam deste modo de ser três coisas. A primeira é o já citado equilíbrio seu. A segunda é que, sendo ao mesmo tempo, e com quase igual intensidade, poesia subjectiva e objectiva, poesia da alma e da natureza, cada um destes elementos penetra o outro; de modo que produz essa estranha e nítida originalidade da nossa actual poesia — a espiritualização da Natureza e, ao mesmo tempo, a materialização do Espírito, a sua comunhão humilde no Todo, comunhão que é, já não puramente panteísta, mas, por essa citada espiritualização da Natureza, superpanteísta, dispersão do ser num exterior que não é Natureza, mas Alma. Decorre daqui uma terceira coisa. Esta interpretação das duas almas da sua alma una obriga a nova poesia portuguesa a ser puramente e absorvidamente metafísica: ser outra coisa seria para ela descer. Por isso não tem ela poetas de amor, ou poetas «sociais», ou outros assim, de género não-metafísico. Na nova poesia portuguesa todo o amor é além-amor, como toda a Natureza é além-Natureza. Pode o amor, cantado por um dos nossos actuais poetas, ser amor nas duas quadras de um soneto; nos tercetos é já oração. E assim com todo o outro género de poesia geralmente submetafísica. Quaisquer poemas da corrente podem servir de exemplo. De um canto à luz tira Junqueiro uma das maiores poesias metafísicas do mundo, poesia que se pode comparar só a «Ode on the Intimations of Immortality» de Wordsworh. Em um assunto aparentemente amoroso, Teixeira de Pascoaes, transcende logo o amor, torna-o degrau para a religiosidade; é da Elegia que se trata.
Ora, de ser a nossa nova poesia absorventemente metafísica há uma conclusão a tirar. Poesia metafísica implica emoção metafísica; emoção metafísica é simplesmente sinónimo de religiosidade.
A actual poesia portuguesa é, pois, uma poesia religiosa. Prova-o materialmente o seu uso de expressões tiradas do culto religioso — com outra religiosidade usadas, claro está — como ungir, sagrar, etc. É de todo religioso o tom geral e imediatamente perceptível da nossa actual poesia. — Há mais: a religiosidade da nossa actual poesia é uma religiosidade nova, que não se parece com a de nenhuma outra poesia, nem com a de qualquer religião, antiga ou moderna. Contrasta-se nisto com o simbolismo, que não tem religiosidade própria; e não a tem porque a que tem é católica ou quase-católica; vem do passado, é morte-ponto de capital importância, porque mostra nitidamente o carácter degenerativo e mórbido do simbolismo.
Mas que religião nova é essa que se adivinha na nossa nova poesia? Não de todo, mas aproximadamente, vai mostrar-nos a análise, em que vamos entrar, da metafísica da nova poesia portuguesa.
IV
Seguindo o método estabelecido na segunda secção deste artigo, o nosso raciocínio, incidindo directamente sobre a obra dos nossos novos poetas, devia poder deduzir, com qualquer coisa como facilidade, as ideias metafísicas orgânicas no seu espírito. Acontece, porém, que a íntima complexidade e novidade da nossa actual poesia torna essa análise directa extremamente difícil. A primeira constatação que o raciocínio faz na análise de que se trata é de que a nossa poesia novíssima é completamente e absorventemente metafísica e religiosa; a segunda constatação é, porém, a da fluidez, incerteza e carácter indefinido dessa religiosidade e desse metafisismo. É perto de impossível encontrar os nossos novos poetas fixos sobre um ponto metafísico qualquer: nem a ideia que fazem de Deus ou da natureza se apresenta de princípio nítida, nem sequer é deduzível das suas obras se têm ou não ideias de algum modo definidas sobre, suponha-se, a imortalidade da alma ou a autodeterminação da vontade. A única imediata constatação que a análise pode sem custo fazer é que a poesia dos nossos novos poetas é 1 — panteísta, 2 — não-materialista, 3 — diversa de qualquer poesia propriamente espiritualista, mas contendo elementos característicos do espiritualismo. Para além desta quase que visual constatação, o problema toma uma complexidade que desconcerta e perturba.
Sendo isto assim, vemo-nos forçados, para elucidação do assunto, a orientar de outro modo a nossa análise. A dificuldade de a fazer de modo directo leva-nos a concluir que, com mais probabilidade de segurança, só a poderemos fazer diferencialmente. Mas diferencialmente como? Seguindo a linha evolutiva da poesia europeia no que metafísica, destacando os períodos culminantes dessa poesia, fixando a direcção metafísica dessa evolução e os característicos metafísicos do último grande período, e depois, comparando a nossa nova poesia a essa, perante a qual ela se deve mostrar fatalmente ou uma decadência, ou uma reacção, ou uma continuação superior, um novo estado evolutivo. Autoriza-nos a esta análise deste modo diferencial, em primeiro lugar o facto de, estando Portugal integrado na civilização europeia, a sua poesia estar também inevitavelmente, e por isso a significação dessa poesia só se poder obter, na sua essência última, sociológica ou metafísica, por uma comparação com o período literário importante que europeiamente a precedeu — obtida preliminarmente a significação evolutiva desse período e, daí, deduzindo, os prováveis característicos do período literário que se lhe seguirá; para que, da coincidência ou incoincidência dos patentes característicos metafísicos da nossa nova poesia com a desse deduzido período, aptamente se avalie se esta poesia representa o estádio poético europeu seguinte, ou se tem de ser relegada para o lugar secundário e restrito de mera poesia ou de decadência ou de reacção. — Esta análise diferencial é-nos, em segundo lugar, autorizada e imposta pelo facto de, sendo uma corrente literária, em sua essência, a expressão de um novo conceito do universo, e um conceito do universo sendo simplesmente uma metafísica, a análise dos períodos literários sob o ponto de vista metafísico ser a análise do que neles é realmente típico e fundamental; donde se conclui que esta, a análise metafísica e diferencial da nossa nova poesia, mais do que outra qualquer análise, que anteriormente fizéssemos, porá em nudez e evidência o que de fundamentalmente grande e novo a nossa nova poesia literariamente contenha e sociologicamente represente.
Para ampla segurança desta análise e natural preparação para a síntese ulterior, temos que: 1.° — estabelecer quais sejam os períodos capitais e evolutivamente marcantes da literatura europeia; 2.° — fixar, digressando, para podermos proceder com segura clareza, quantos e quais sejam os sistemas metafísicos definidamente fundamentais; 3. ° — determinar, aplicando esta constatação àquela, quais os sistemas metafísicos intimamente e caracteristicamente almas daquelas culminantes épocas de evolução; 4. ° — concluir, comparando as metafísicas dessas épocas, de que sistema para que sistema, ou de que espécie de sistemas para que espécie de sistemas, evolui a metafísica da poesia europeia, e, portanto, a alma da civilização da Europa; 5 ° — deduzir — determinada essa linha de íntima evolução espiritual, e fixado qual o último grande período literário europeu e qual a sua metafísica — qual deva ser a metafísica do grande período que se lhe deve seguir; 6.° — comparar a metafísica da nossa actual poesia tornada nítida e classificada por um confronto definidor com os sistemas metafísicos preliminarmente descobertos, com a metafísica deduzível como devendo ser a desse novo grande período da literatura da Europa. Dessa comparação sairá determinada, não só definitivamente qual a metafísica da nossa nova poesia (o que imediatamente pretendemos saber), mas também qual a significação sociológica que haja em ter essa poesia a metafísica que se descobrir que tem (o que é o fim imediato e último de todos estes nossos artigos). Isto é, se se constatar que a Alma Portuguesa está criando, através da sua actual Poesia, um novo conceito emocional — e portanto colectivo e nacional — do Universo e da Vida, e que esse conceito é aquele que na linha evolutiva da alma europeia representa um novo estádio criador, ter-se-á estabelecido uma analogia irrefutável entre o actual período literário e os que, nos períodos máximos das nações maximamente criadoras de civilização, precedem um grande período de vida nacional socialmente criadora, e, de resto, já são esse grande período na sua expressão poética, isto é, na sua mais alta e permanente expressão. Por outras palavras: se aquilo se verificar, terá já começado a dilatação da alma europeia que representará uma Nova Renascença, ainda que essa dilatação exista, por enquanto, apenas na alma do país donde essa Nova Renascença raiará para o que na Europa estiver acordado para a receber.
V
Precisamos, pois, antes de tudo fixarmo-nos sobre quais sejam os períodos capitais da literatura da Europa. Não é difícil conhecê-los. Num período literário tudo está ligado, e à grandeza do período — entendendo por grandeza o seu valor criador de novos elementos espirituais de civilização — corresponde infalivelmente a grandeza individual dos seus representantes. Escusamos, mesmo, de nos deter no exame do número desses grandes representantes de cada período. Basta tomar conta intelectual do representante máximo de cada período, e compará-lo aos representantes máximos dos outros períodos. É uma questão de altitude espiritual. A grandeza de um período literário mede-se pela grandeza individual do seu máximo representante. Mas porque? Por uma razão muito simples. Se a grandeza literária de um período consiste no valor do que ele é capaz de criar de espiritual é evidente que uma das maneiras — a mais flagrante — de medir esse valor é ver o valor do que ele é capaz de criar de espiritual dentro de si próprio; isto é, a altura espiritual e criadora a que ele é capaz de elevar os seus próprios elementos espirituais, isto é, as individualidades que em si contém. Ora, a altura e poder criador a que foi capaz de se elevar nas almas mede-se evidentemente pela altura e poder criador da alma que mais alto se elevar. Não temos, portanto, que medir o valor criador de um período literário com outra coisa que não seja o valor do seu máximo literato — isto é, geralmente, porque a poesia é a mais alta manifestação do espírito, do seu máximo poeta. Homero e Shakespeare, as duas culminâncias da literatura, provam dos períodos a que pertencem que são — como todos admitem que são — os dois maiores e mais criadores na vida da humanidade.
Guardemos, pois, desta análise uma tripla constatação: l.ª — que um período literário é sociologicamente importante quando nele se notam figuras importantes de literatos, e, especialmente de poetas; 2.ª — que a importância sociológica de um período literário se mede pela sua máxima figura; e 3.ª — que, portanto, a humanidade só mostra, em certo período, um verdadeiro avanço espiritual, isto é, um aumento de poder criador, quando o maior poeta desse período é superior aos máximos poetas de todos os períodos anteriores. Esta última, corolária, constatação é iluminadora da história. Assim, na superioridade de Homero a quantos poetas anteriores se divisem, lê-se claramente o aumento de poder criador que a humanidade no seu período grego trai sobre anteriores períodos; e assim como Homero é o primeiro máximo poeta de pleno e integral equilíbrio, a Grécia Antiga é o primeiro povo plena, lúcida e integralmente criador que na história nos aparece. A inferioridade de Vergílio a Homero mostra que da Grécia para Roma a humanidade não avançou, que nenhum novo elemento espiritual lhe nasceu — o que nos indica nitidamente que Roma constituiu, não uma civilização, mas o prolongamento inferior e decadente da civilização grega. Só na Renascença nos aparece uma figura culminante, Shakespeare, que acusa sobre Homero alguma — não importa quanta — superioridade. Isto indica que a Renascença marca uma evolução real do espírito humano, o atingir de um grau já supergrego de poder criador. Como, desde a Renascença, ninguém ainda apareceu de quem se possa pretender que é superior, ou mesmo igual a Shakespeare, forçoso é que se conclua que a humanidade, se entrou já em período de verdadeiro avanço espiritual sobre a Renascença, não chegou ainda à culminância desse período.
Posto isto, ponhamos a nossa atenção no desenvolvimento da nossa análise. Na literatura da Europa há só dois períodos a que se pode chamar grandes sem escrúpulos de adjectivador. O primeiro é a Renascença, o movimento — para o nosso caso, apenas literário — que começou em Dante, culminou em Shakespeare e acabou com Milton. O segundo é o Romantismo, entendendo por Romantismo o movimento literário principiado na Alemanha, com a sua culminância em Goethe, continuado na Inglaterra, com Shelley por figura máxima, e acabado em França, com Vítor Hugo por poeta principal. O «romantismo» dos outros países é coisa, além de inferior e dependente destes, em alguns casos com outra significação. Isso não importa agora. Cinjamo-nos à corrente representativa e central.
Estabeleçamos agora o valor relativo da Renascença e do Romantismo. Pela nossa constatação de há pouco, quanto ao modo de avaliar a grandeza dos períodos literários, notamos sem hesitação que a Renascença é superior ao Romantismo. Nesse caso, que valor tem, ante a Renascença e como vindo após ela, o movimento romântico? Visto que o seu valor é inferior, ele só pode ser uma de três coisas: ou uma decadência da Renascença, ou uma reacção contra a Renascença, ou o princípio de uma Nova Renascença, que em sua culminância será superior, mas que pode não o ser em seu início, como Dante, o maior poeta do início da Renascença, é inferior a Homero. Vejamos. Partindo da constatação, que adiante se fará — e que é, de resto, tão evidente que quase se pode dar como feita — de que o espiritualismo é a metafísica da Renascença, torna-se evidente que, se o Romantismo é uma decadência da Renascença, não pode a sua metafísica ser senão uma decadência do espiritualismo, e não poderá conter, portanto, elementos outros do que espiritualistas. Ora, o Romantismo contém caracteristicamente um elemento panteísta — pouco importa, por enquanto, se puro ou não. Se tem um elemento a mais, não pode ser uma decadência da Renascença. Tão-pouco pode ser uma reacção contra a Renascença. Se o fosse, a sua metafísica seria inteiramente oposta à da Renascença, isto é, seria de todo antiespiritualista. Ora, como veremos, o elemento espiritualista encontra-se presente — com mais ou menos, e por vezes com grande, nitidez — na poesia representativa dos românticos. Não é, pois, o Romantismo uma reacção contra a Renascença; envolve, sim, uma reacção, mas é contra outra poesia claramente antiespiritualista essa — a poesia do século XVIII. Por exclusão de partes temos, portanto, infalivelmente que concluir que o romantismo é, não já uma época, mas o princípio de uma época; não é a Nova Renascença, mas o movimento precursor dessa Renascença Nova. Constatada a inferioridade do Romantismo à Renascença, não há outra hipótese a admitir.
VI
Na classificação dos sistemas filosóficos temos a considerar duas coisas: a constituição do espírito e os fins a que tende na sua actividade metafísica.
O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente — interiormente e exteriormente — percipiente, nunca pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que se esforce por chegar, e até certo ponto chegue, a uma concepção altamente monística, dentro dessa concepção monística há um dualismo. Mesmo que dos dois elementos constitutivos da experiência — matéria e espírito — se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência — o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o espírito, um dualismo.
O género de dualismo, porém, depende de, é condicionado por, o que se considera a Realidade Absoluta, a realidade realmente real; e é a procura dessa realidade que é o fim da especulação metafísica. O espírito não pode admitir duas realidades: a ideia de realidade absoluta envolve a ideia de unidade. Mesmo, portanto, que o espírito admita, como em alguns sistemas — e flagrantemente no espiritualismo clássico — acontece, dois princípios, com igual objectividade, reais, é forçado a admitir que o género de realidade de um desses princípios é superior ao da do outro.
Temos, pois, que todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe, por mais que ele lhe queira fugir, que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema pura e integralmente monístico; e um sistema puramente dualístico não seria um sistema filosófico.
Todo o sistema filosófico sendo, portanto, a tentativa para reduzir a um monismo o dualismo essencial do nosso espírito, é de subentender que represente uma sistematização de elementos da Experiência em torno àquela parte da Experiência — matéria ou espírito — que o filósofo, por causas que, em sua essência, são de temperamento, considera a Realidade. Temos, pois, que, consoante para o filósofo o espírito ou a matéria se apresenta como a realidade essencial, um de dois sistemas pode directamente surgir — o espiritualismo ou o materialismo. — Para o materialista a forma essencial de realidade, seja ela especializadamente qual for no seu especial sistema, é sempre uma realidade de que forma parte inalienavelmente um elemento ou espacial, ou, pelo menos, de inconsciência. — Para o espiritualista, através das várias formas que pode tomar o espiritualismo, há sempre de central e essencial um elemento, o elemento consciência, que é o que o espírito imediatamente concebe como sua base própria. Daqui partem todas as teorias características do espiritualismo — a imortalidade da alma (concebida impossibilidade de anular a consciência), o livre-arbítrio (concebida superioridade do consciente sobre o inconsciente) e a existência de um Deus clara ou obscuramente tido como pessoal, isto é, como consciente.
A ideação metafísica pode, porém, tentar monismo de outro modo mais queridamente absoluto. Não há, é certo, outros elementos da Experiência que não a matéria e o espírito; o pensamento, porém, de certo modo tenta suprimir este dualismo. E de três modos o pode fazer: 1.° Negando toda a realidade objectiva a um dos elementos da Experiência, isto é (consoante já passim vimos), reduzindo o dualismo ao minimamente dualístico (ainda que impossivelmente de todo monístico) dualismo de realidade-aparência. Conforme é o espírito ou a matéria o elemento eliminado, temos o materialismo absoluto ou o espiritualismo absoluto. — 2.° Admitindo a realidade igual de ambos os elementos da Experiência; ora, como isto resulta num absurdo de sistema — dado que a existência de duas, iguais, realidades é impensável — fatalmente essa dupla realidade tira o seu carácter de realidade de ser, basilarmente, a dupla manifestação de qualquer coisa em sua essência tida por nem matéria nem espírito, ainda que somente existente e real naquelas suas manifestações. Se essa substância as transcendesse, isto é, fosse outra coisa, existisse substancialmente à parte da sua manifestação através de matéria e espírito, estaríamos então piorados para três realidades — 3. ° Negando a realidade a ambos elementos da Experiência, considerando-os apenas como a manifestação, não real mas ilusória, de uma transcendente e verdadeira e só realidade. — Temos assim, além dos citados materialismo e espiritualismo absolutos, no segundo sistema citado o panteísmo, e no terceiro o transcendentalismo.
O leitor reparou que no primeiro género de sistemas acima expostos há duas formas — uma materialista, outra espiritualista. O mesmo acontece ao panteísmo e ao transcendentalismo.
É que, por mais que abstractamente ideemos, realmente não temos outros modelos por onde idear senão espírito e matéria. Mesmo, portanto, que concebamos um Transcendente, inconscientemente e involuntariamente o teremos de conceber como feito à imagem da matéria ou à semelhança do espírito. Assim, temos um panteísmo materialista e um panteísmo espiritualista. O primeiro — o de Espinosa — é o que encerra o que Espinosa, não se sabe porquê, chama Deus, nos seus atributos. Estes, são como que o corpo de Deus; mas para além desse corpo, Deus não é nada. É só o corpo de si próprio. Vê-se que o modelo é materialista; tanto quanto um panteísmo pode ser materialista, é-o o sistema de Espinosa. — O panteísmo espiritualista admite Deus substância de tudo, mas permanecendo Deus e diverso através da sua manifestação por seus atributos. Faça-se uma distinção subtil, que tem de ser subtilmente compreendida: para o panteísta materialista tudo é Deus; para o panteísta espiritualista Deus é tudo. Se houvesse sido pensado coerentemente, e despidamente de influências de estreita teologia, teria sido este o sistema de Malebranche.
Com o transcendentalismo acontece o mesmo. Importa fixar bem a diferença entre o panteísmo e o transcendentalismo, tanto mais que estabelecemos nós estes termos independentemente de como tenham sido usados antes, assim como, de resto, fazemos esta classificação de modo absolutamente original. — Para o panteísmo de qualquer das duas espécies, matéria e espírito são manifestações reais de Deus, exista ele (panteísmo espiritualista) ou não (panteísmo materialista) como Deus além das suas duas manifestações. Para o transcendentalista, matéria e espírito são manifestações irreais de Deus, ou, antes, para não errarmos, do Transcendente, o Transcendente manifestando-se como a ilusão, o sonho de si próprio. — Dos transcendentalistas, para o transcendentalista materialista (Schopenhauer), a essência real, de que as coisas são a ilusão, é qualquer coisa vaga cujo carácter essencial é ser inconsciente; ora, como a consciência é a base dos sistemas espiritualistas, temos aqui um sistema que, apesar de transcendentalista, o é antiespiritualista — , isto é, materialisticamente. — É escusado definir o tanscendentalismo espiritualista, que representa a hipótese contrária.
Um outro sistema pode, porém, surgir, limite e cúpula da metafísica. Suponha-se que a um transcendentalista qualquer esta objecção se faz: O Aparente (matéria e espírito) é para vós irreal, é uma manifestação irreal do Real. Como, porém, pode o Real manifestar-se irrealmente? Para que o irreal seja irreal é preciso que seja real: portanto o Aparente é uma realidade irreal, ou uma realidade real — uma contradição realizada. O Transcendente, pois, é e não é ao mesmo tempo, existe à parte e não à parte da sua manifestação, é real e não real nessa manifestação. — Vê-se que este sistema é, não o materialismo nem o espiritualismo, mas sim o panteísmo, transcendentalizado; chamemos-lhe pois o transcendentalismo panteísta. Há dele um exemplo único e eterno. É essa catedral do pensamento — a filosofia de Hegel.
O transcendentalismo panteísta envolve e transcende todos os sistemas: matéria e espírito são para ele reais e irreais ao mesmo tempo, Deus e não-Deus essencialmente. Tão verdade é dizer que a matéria e o espírito existem como que não existem, porque existem e não existem ao mesmo tempo. A suprema verdade que se pode dizer de uma coisa é que ela é e não é ao mesmo tempo. Por isso, pois, que a essência do universo é a contradição — a irrealização do Real, que é a mesma coisa que a realização do Irreal — , uma afirmação é tanto mais verdadeira quanto maior contradição envolve. Dizer que a matéria é material e o espírito espiritual não é falso; mas é mais verdade dizer que a matéria é espiritual e o espírito material. E assim, complexa e indefinidamente...
Se um pouco nos alongámos na exposição do transcendentalismo panteísta, breve se verá que tínhamos razões para isso. De resto, o leitor que tenha bem em mente a orientação do nosso raciocínio e os característicos, ainda que superficialmente lembrados, da nossa nova poesia, deve já suspeitar a que vem esta menos breve exposição no meio de umas breves considerações.
VII
Ao passar à análise da filosofia dos dois grandes períodos literários da Europa e perscrutação de qual a linha evolutiva dessa filosofia, importa, antes de tudo, distinguir entre a «filosofia» pensamento individual e a « filosofia» sentimento poético. — Tanto a filosofia do filósofo como a do poeta são questões de temperamento, mas, ao passo que o temperamento do filósofo é intelectual, o do poeta é emocional; ora, o que é intelectual é essencialmente individual, e o que é emocional é essencialmente colectivo e, portanto, quando se dá num indivíduo, representativo da colectividade a que ele pertence. É, portanto, a filosofia do poeta, e não a do filósofo, que representa a alma da raça a que ele pertence. Encarada a questão sob outro ponto de vista, isto ainda mais nitidamente se percebe. Na obra de filosofia a forma nada vale: a ideia é tudo. Na obra de poesia a ideia e a forma estão ligadas numa dupla unidade, unidade imaginativa, isto é, unidade que vem da fusão da emoção e da ideia que em sua essência é o acto de imaginar. Ora, a imaginação depende da organização dos sentidos do indivíduo; um visual imagina de modo inteiramente diverso que um auditivo, um indivíduo de intensa vida interior e pouca atenção ao mundo externo, de modo diferente de ambos. De que depende a organização dos sentidos? Sem dúvida alguma, da hereditariedade. E a hereditariedade que é que mais transmite e grava? Os característicos de raça. O acto de imaginar é o que, pois, em linha directa descende da alma da raça. E como o mais alto grau de imaginar é o do poeta, é na poesia que vamos buscar a alma da raça, e na filosofia dessa poesia aquilo a que se pode chamar a filosofia da raça. — O espaço não permite que nitidamente, ou mais argumentadamente, se exponha este problema. Para o nosso limitado caso, o pouco que aqui se expôs deve bastar.
Consideremos, pois, qual a filosofia do primeiro grande período poético da Europa — a Renascença. Constata-se sem dificuldade qual ela seja. É o espiritualismo puro e simples, em uma ou outra das suas duas formas. Ocorrerá perguntar: mas não foi a Renascença inimiga do espiritualismo? Do da idade-média foi, mas esse era um espiritualismo inferior. Da forma católica e aristotélica foi inimiga a Renascença; mas foi para ser mais e mais puramente espiritualista, foi para se lançar no maior espiritualismo da Reforma e de Platão. Platonista foi, de resto, toda a poesia lírica de algum valor da Renascença. É uma das provas, a mais flagrante.
Como vimos, o espiritualismo é o sistema que tem seu centro de realidade na consciência: logicamente, em seu temperamento, um espiritualista é um homem que dá atenção superiormente à vida interior e inferiormente à vida exterior. Toda a poesia da Renascença é de supor, portanto, que gire sobre assuntos humanos e não na Natureza. Assim é: o que de supremo tem a poesia da Renascença é a poesia épica — isto é, de acção humana — , e a poesia dramática (renascença inglesa, culminando em Shakespeare), de acção humana mais essencialmente ainda. Com isto, fica tirada a prova real.
No Romantismo surge-nos imediatamente o contrário. Cessa, a não ser em arremedo débil de influências da Renascença, a poesia épica e dramática; nasce a verdadeira poesia da Natureza, e aparece um novo género de poesia amorosa. É comum a ambas um característico basilar: perante a Natureza ou perante o amor, o indivíduo comove-se até perder a individualidade, entrega-se. Mas não se entrega como (no caso da poesia religiosa e amorosa, não da Natureza) por vezes o poeta na Renascença fazia, por humildade; aqui, no Romantismo, entrega-se para viver uma vida mais ampla. Ora, o indivíduo não se entrega — e menos então se entrega para viver — a qualquer coisa exterior que não considere como real. Temos, pois, em última análise, que o romântico representativo se sente parte de uma Natureza real, ainda que espiritualmente real. Estamos em pleno sentimento panteísta. Com efeito, desde o panteísmo materialista de Goethe ao panteísmo espiritualista de Shelley, o romantismo nada é senão panteísmo.
Posto isto, ficamos sabendo quais as «filosofias» da Renascença e do Romantismo, e vendo qual a linha evolutiva da filosofia da poesia europeia, qual, portanto, a evolução da alma da civilização da Europa. Evolui — o que de resto se podia ter concluído a priori, mas foi melhor que de outro modo se concluísse — do mais simples para o mais complexo; parte do espiritualismo e avança até ao panteísmo, e daí, inevitavelmente, subirá para a complexidade máxima do transcendentalismo, até chegar ao limite, o transcendentalismo panteísta.
Por que característicos, por assim dizer, exteriores se pode conhecer o sentimento transcendentalista? Nas duas formas menos complexas do transcendentalismo, o materialista e o espiritualista, o indivíduo sente-se, como o panteísta, parte de um Todo, mas com a diferença que, para ele, esse Todo é sentido como irreal, como ilusório. Decorre daqui que o poeta transcendentalista (materialista ou espiritualista) fatalmente será um poeta pessimista. Mesmo que, transcendentalista espiritualista, conceba como vagamente espiritual o Transcendente, esse Transcendente, por sua própria, concebida, natureza, é sentido como Mistério, e mesmo onde levanta abate. — Percorrendo todo o Romantismo não encontramos este sentimento; apenas, em Alfred de Vigny, e nos seus descendentes, já pós-românticos, há um vago arremedo dele. Mas, ao atentar bem nos característicos que deduzimos como devendo ser os da poesia transcendentalista, revela-se-nos imediatamente que estamos em Portugal e em plena descrição da poesia de Antero. Concluímos, pois, que especiais condições de raça fazem do sentimento transcendentalista apanágio de Portugal. Se o transcendentalismo sob forma de emoção começou entre nós, entre nós deve continuar. Vejamos, pois, se a sua forma mais alta e complexa, o transcendentalismo panteísta, foi, acaso, atingida já.
Não é preciso mais do que atentar na mera expressão da nossa nova poesia para nos encontrarmos em pleno transcendentalismo panteísta. Logo no vestíbulo da investigação nos aparece a característica contradicão deste sistema. « Materialização do espírito», e « espiritualização da matéria», « choupos d'alma», quedas que são ascensões, folhas que tombam que são almas que sobem — não é preciso mais, repetimos. Eis, em seu pleno estado emotivo, o transcendentalismo panteísta. Quanto mais se analisa, mais claramente isto se revela. Para os nossos novos poetas, uma pedra é, ao mesmo tempo, realmente uma pedra e realmente um espírito, isto é, irrealmente uma pedra... Mas para que continuar? A evidência de certas provas, quando o que fica provado traz consigo tudo em que pusemos a nossa esperança e a nossa fé, embriaga de alegria para além de se poder ficar com a lucidez intacta e o poder de exprimir em equilíbrio.
E quais são, enfim, as conclusões últimas de quanto neste artigo expusemos? São aquelas em que através de todos os nossos artigos temos insistido. Se a alma portuguesa, representada pelos seus poetas, encarna neste momento a alma recém-nada da futura civilização europeia, é que essa futura civilização europeia será uma civilização lusitana. Primeiro, porém, consoante todas as analogias no-lo impõem, a alma portuguesa atingirá em poesia o grau correspondente à altura a que em filosofia já está erguida. Deve estar para muito breve, portanto, o aparecimento do poeta supremo da nossa raça, e, ousando tirar a verdadeira conclusão que se nos impõe, pelos argumentos que já o leitor viu, o poeta supremo da Europa, de todos os tempos. É um arrojo dizer isto? Mas o raciocínio assim o quer.
VIII
Feito assim o esboço psicológico da nossa actual poesia, no que respeita à sua estética e à sua metafísica, resta concluir aproximadamente qual deva ser a resultante social das forças da Raça cujo primeiro assomo à tona da realidade ora e apenas se está fazendo nessa, citada, poesia. Melhor dizendo, qual será a criação social a que vai chegar a alma da Raça, por enquanto no seu início de despertar e revelada apenas, por isso, na forma directamente espiritual, a literatura?
Só muito informemente, por razões que já expusemos, essa criação social, em seu género e especialidade, é antevisível. Mas se é antevisível de algum modo e até certo ponto, de que modo e até que ponto o é? — Determinada a metafísica da nova corrente, queda revelado definitivamente, em sua essência última e central, o que essa corrente espiritualmente é e representa. Vimos que essa corrente se traduz por um metafisismo claramente definível como transcendentalismo panteísta: resta saber o que dá o transcendentalismo panteísta posto em tendência social. Daqui não resultará claramente definida qual essa criação social — como ficar definida ao raciocínio, se ainda se não definiu nas almas? — mas resultará ficar atingida na sua fisionomia longínqua.
Sendo o transcendentalismo panteísta um sistema essencialmente envolvedor de uma fusão de elementos absolutamente opostos, segue-se que a criação resultante da nova alma lusitana deverá envolver, em seu resultado definitivo e último, o estabelecimento de qualquer nova fórmula social onde uma fusão dessas se dê. Uma rápida análise, aqui eliminada, determina facilmente que o raciocínio permite profetizar que a futura criação social da Raça portuguesa será qualquer coisa que seja ao mesmo tempo religiosa e política, ao mesmo tempo democrática e aristocrática, ao mesmo tempo ligada à actual fórmula da civilização e a outra coisa nova. Inútil será apontar quão flagrantemente esta dedução vaga e precisa decorre da constatação já feita sobre o carácter fundamental, metafisicamente patente, de alma lusitana. Igualmente inútil deve ser notar quanto essa futura fórmula deve distar do cristianismo e, especialmente do catolicismo, em matéria religiosa; da democracia moderna, em todas as suas formas, em matéria política; do comercialismo e materialismo radicais na vida moderna, em matéria civilizacional geral. E, finalmente, é da mesma inutilidade acrescentar, acentuando e especializando a sua divergência da democracia, que as formas extremas ou perturbadas desta — anarquismo, socialismo, etc. — serão varridas para fora da realidade, mesmo do sonho nacional; os humanitarismos morrerão ante essa nova fórmula social, de portuguesa origem, mais alta, provavelmente, em sentimento religioso do que outra qualquer que tenha havido, mais rude e cruel talvez em prática social do que o mais rude militarismo comercialista. Console-nos isto, desde já, no meio de ver, de leste a oeste de Portugal, a nossa sub-humanidade política e a nossa proletariagem humanitariante. Tudo isso, que afinal é estrangeiro, morrerá de por si, ou à boca dos canhões do nosso Cromwell futuro.
E a nossa grande Raca partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas «daquilo de que os sonhos são feitos». E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente.
Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.
- 45.1ª publ. in “A Águia”, 2ª série, nº 9, 11 e 12. Porto: Set., Nov. e Dez. 1912.