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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

UMA RÉPLICA AO SNR. DR. ADOLFO COELHO

UMA RÉPLICA AO SNR. DR. ADOLFO COELHO

Mais uma réplica contra a pacatez dos depoimentos desde o dia 3 do corrente veem sendo publicados na República.

Agora é o colaborador da Águia, snr. Fernando Pessoa, que vem responder ao ilustre filólogo e lente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, snr. Adolfo Coelho, que não crê no super-Camões.

Meu caro amigo — O convite geral feito na sua secção de inquérito literário, e aquele com que verbalmente honrou a obscuridade ou a juventude do meu nome, foram, como sabe, de princípio aceites por mim para, no seu jornal, levantar a luva que inquiridos vários arremessaram à Renascença Portuguesa. Lançado, porém, que por mim fui no caminho da contra-argumentação, breve verifiquei que, tendo por dever meu responder a tudo quanto no seu inquérito se dissesse contra a Renascença Portuguesa, as dimensões escritas da resposta excederiam, e de muito, as dimensões de um artigo de jornal; ao passo que a nulidade do meu nome, por mais que o meu raciocínio lhe fosse capa para o público, impedia-me de, sequer, pensar em pedir-lhe a inserção de artigos sobre artigos, discutindo, ponto por ponto, a como que argumentação dos adversários da nossa novíssima poesia. Resolvi, por isso, guardar para folheto a resposta extensa e completa a quantos simulacros de objecções várias competências nominais houvessem deixado cair nas suas colunas. Preparo esse folheto, que a Renascença Portuguesa editará.

Nessa atitude me conservaria, se o Prof. Adolfo Coelho não tivesse feito incidir uma parte do seu depoimento sobre um artigo meu, publicado na A Águia, e que visa precisamente a explicar, na sua significação sociológica, a nossa novíssima poesia; chamado assim, como que por meu nome, à baila jornalística, sinto-me com o direito e o dever de abrir uma clareira na minha renúncia à publicidade maior e a valer-me, na extensão de um artigo, do seu amável convite.

Os argumentos que empregarei contra as objecções do Prof. Adolfo Coelho servir-me-ão, ao mesmo tempo e de sumário modo, de resposta geral a outras adversas referências feitas à Renascença Portuguesa e à nossa nova poesia; porquanto, explicativos como são daquelas, implícita resposta levam a todos os seus inimigos. Isto não exclui — bom é que se note — a mais detalhada resposta no folheto. Apenas a prepara e imperfeitamente a resume.

Por ora, pois, responderei apenas às vagas objecções feitas contra o carácter renovador e grande da nossa novíssima poesia pelo Prof. Adolfo Coelho no seu quase erudito artigo. Esse artigo é sereno e aparentemente lúcido e motivado; infelizmente, quem se der ao trabalho de lhe procurar o fio condutor de uma lógica, encontra-lhe uma íntima desconexão, desmentindo a sua fisionomia de ligado e conexo.

Seja como for, perscrutemos em que se baseia o Prof. Adolfo Coelho para descrer de uma renascença literária em Portugal e de ser a nossa poesia novíssima representativa dessa renascença. Cinge-se a duas considerações, que era indispensável que estivessem submersas em elementos acidentais e anedóticos. Essas duas objecções, que não pecam por explícitas nem por argumentadas se perdem, são: 1. ° — que a nossa nova poesia não mostra avanço, especialmente no que diz respeito à grandeza individual dos seus representantes, sobre a poesia da geração de 1860 a 1870; 2.° — que não mostra avanço espiritual — isto é, em compreensão da Natureza, expressão de emoções, etc., — sobre qualquer outra corrente poética — a romântica, suponha-se, consoante exemplos indicados de Byron e Vítor Hugo. Concretizando mais: para o Prof. Adolfo Coelho a nossa novíssima poesia nem pela grandeza dos seus poetas, nem pela originalidade e grandeza do seu carácter geral se impõe como poesia característica de uma renascença; ou mesmo de um grande período poético. Isto é o essencial e o basilar do artigo; o resto ou provém disto ou não tem nada que ver com o caso.

As duas considerações citadas reduzem-se, para o contra-argumentador, a uma só. É que a grandeza dos poetas de uma corrente literária está sempre em relação com a originalidade, o equilíbrio e a nacionalidade (isto é, o carácter nacional) dessa corrente. Não se pode apontar em toda a história literária movimento que tenha surgido com carácter de originalidade, equilíbrio e nacionalidade que não tenha sido representado por, revelado através de grandes figuras de poeta, e grandes na precisa proporção em que essa corrente é nacional, original e equilibrada.

Assim, as duas poesias que mais se nos oferecem como brotando inesperadas e originais do seio dos seus povos, são a poesia grega e a poesia da Renascença — preeminentemente, a da renascença inglesa. A primeira surge como que virgemente, anadiomenicamente, do oceano escuro do tempo; liga-se por episódios e elementos míticos à anterior poesia da Índia, mas a sua essência, a sua alma, a sua assombrosa alma lúcida e profunda, é-lhe original e própria. De modo igualmente flagrante rompe da noite da idade chamada média a poesia que, começando em Dante, culmina em Shakespeare e acaba em Milton.

Todas as outras épocas literárias são inferiores a estas duas em originalidade. Todas descendem muito mais evidentemente do passado do que estas.

O próprio Romantismo não destaca da Renascença ou mesmo do século XVIII como a Renascença surge da idade média e a poesia grega do que lhe é anterior. Isto é incontestável.

Ora é precisamente nos dois períodos verificados como os maiores da literatura em matéria de originalidade que aparecem as maiores obras individuais, as maiores figuras individuais de poetas. Porque é fora de dúvida, para quem tenha mais do que um vácuo de compreensão, que as alturas máximas da poesia estão na Ilíada e em Shakespeare, e, logo abaixo, nos dramaturgos gregos e nos dois épicos supremos da Renascença. Dante e Milton. De modo que a questão se reduz simplesmente a procurar o grau de originalidade, equilíbrio e nacionalidade no actual período poético português; se essas forem constatadas grandes, inevitavelmente se terá de conclui ou que os novíssimos poetas nossos são grandes poetas, ou caso seja impossível considerá-los como tais, que brevemente surgirão grandes poetas ou, pelo menos, um grande poeta da nossa nova poesia.

Mas a questão pode ser posta à prova mais restritamente analisando. Em primeiro lugar, escusamos de perscrutar a nacionalidade de uma poesia; se se prova a sua plena e equilibrada originalidade, fica ipso facto, provado o seu carácter de absolutamente nacional. Porque se a poesia de uma nação é em certo período em absoluto original, donde lhe poderá vir essa originalidade, esse poder de ser diversa e outra do que todas as outras poesias, se não de ser a genuína e suprema interpretação do que esse país tem de essencialmente diverso e outro do que outros países — e isso é ser tal país e não outro, é a raça. Fica, portanto, restrita a nossa investigação a constatar a existência ou não existência, na nossa nova poesia, de origialidade e equilíbrio.

Mas mesmo isto é escusado. O caso é saber constatar originalidade: pois que a perfeita e verdadeira originalidade não existe sem equilíbrio perfeito. Vejamos porquê. Primeiro, em que consiste o equilíbrio de um psiquismo qualquer, individual ou colectivo? Essencialmente no grau da sua atenção ao mundo exterior; e quanto mais ele é atento ao mundo exterior, tanto maior seu equilíbrio é. E em que consiste a originalidade? Em ter ideias inteiramente próprias e individuais; e «inteiramente individuais e próprias» quer dizer inteiramente subjectivas. Como, porém, o espírito elabora impressões vindas do exterior, a originalidade será tanto maior quanto maior for o número de impressões do exterior que o espírito é capaz de acolher e elaborar para a originalidade; isto é, quanto maior for a sua atenção ao mundo exterior; quer dizer, pois, quanto maior for o seu equilíbrio. Portanto, originalidade verdadeira e perfeita envolve equilíbrio, nunca é senão originalidade equilibrada.

Mas como é que se pode medir a originalidade de uma corrente literária? Em que é que consiste, propriamente, essa originalidade? Vejamos primeiro o que é uma corrente literária. É manifestamente uma comunidade de ideias ou instituições, característica de poetas e literatos de uma época. Qual é a base de uma comunidade de ideias? Um fundamental conceito igual das coisas, uma igual atitude perante o universo e a vida.

Que é um comum conceito do universo e da vida? Um comum conceito do que constitui a realidade. O ponto único, portanto, para onde tem de convergir a nossa atenção é este — se a nova poesia portuguesa envolve qualquer conceito novo do que é a realidade, se a sua atitude perante o universo e a vida é uma atitude inteiramente nova.

Ora Portugal pertence à civilização europeia ocidental; a sua evolução, literária ou outra, tem vindo integrada, portanto, na evolução literária ou outra, dessa civilização. E visto que essa civilização tem, em literatura porque em tudo, uma linha evolutiva, se a nossa nova poesia traz qualquer coisa de original em si, essa originalidade deve ser o princípio de um novo estádio na linha evolutiva da civilização em que Portugal está integrado — nova Renascença, portanto, que de Portugal se derramará para a Europa, como da Itália para a Europa se derramou a outra Renascença. Mas se essa originalidade, a ser verdadeira, representará um novo estádio na geral linha evolutiva literária da Europa, a sua natureza deve ser de certo modo deduzível dos anteriores estádios da evolução literária europeia. O que temos, portanto, que fazer é analisar os estádios anteriores da evolução literária da Europa moderna, deduzir dessa análise quais devam ser os característicos do estádio literário seguinte, e depois comparar esses característicos deduzidos com os característicos da nossa novíssima poesia. Se houver coincidência, teremos provado a nossa tese.

Os dois estádios literários da civilização europeia moderna são a Renascença e o Romantismo. Analisemos os característicos destes, deduzamos depois os prováveis característicos do período literário que se lhes deve seguir e comparemos finalmente esses característicos com os da nova poesia portuguesa.

Qual é a atitude da Renascença perante o universo e a vida? Que é que para ela constitui essencialmente a Realidade? É a alma e só a alma: a Renascença não tem o sentimento da Natureza. Vejamos. Quais são as formas poéticas da Renascença? São ou poemas de amor (Petrarca), ou poemas de acção humana (os poetas épicos) ou dramas (Shakespeare e os dramaturgos do seu tempo). São portanto três formas de poesia de Alma, só de Alma — visto que tratam ou do sentimento que liga as almas — o amor — ou de acção humana, acção de almas, portanto; ou, no seu poeta culminante, Shakespeare, mais completamente ainda de almas em acção. Quanto à Natureza, os poetas da Renascença não a sentem, por mais nitidamente que a vejam: assim, o mais observador de todos eles, Shakespeare, não é poeta perante a Natureza, é observador simplesmente. Descreve o que vê em maravilhosos versos; mas nenhuma simpatia o liga a essa Natureza que tão nitidamente vê.

Dá-se com o Romantismo o caso inverso. Para os românticos a única verdadeira Realidade é a Natureza; da Alma conhecem só cada um a sua alma individual. Daí o carácter inteiramente diverso da poesia romântica em relação à da Renascença. A sua noção da acção humana é fraca e descontínua, de modo que são incapazes de elaborar uma epopeia. A sua fraqueza psicológica é conhecida: os únicos romanticos capazes de alguma intuição psicológica, Goethe e Shelley, apoiam-se ao passado, à tradição da Renascença, na figura de Shakespeare, para beber psicologia. E o resultado? Grande como é em outras coisas, Goethe-psicólogo não se pode medir, não digamos já com Shakespeare, mas mesmo com outros dramaturgos -Webster, por exemplo — da época shakespeareana. Shelley, para escrever «The Censi», estudou atentamente os processos shakespeareanos — e o que resultou, ainda que belo, não se pode comparar em intuição dramática sequer com a obra de outros tais que Webster.

Esta diferença entre os poetas da Renascença e os do Romantismo colhe-se flagrantemente no modo como pensam.

Os poetas da Renascença pensam por ideias ou por abstracções: os românticos pensam por imagens. Isto é, os primeiros pensam em termos de Alma, os segundos em termos de Natureza. Nenhum romântico poderia escrever um soneto como a o Alma minha gentil, tão despido de imagens, tão directamente exprimindo a alma.

Ora, sendo estes os característicos dos dois grandes períodos da poesia europeia moderna, será possível deduzir deles os característicos que deverá ter o grande período da poesia que se lhes seguirá? A dedução não é fácil; é facílima. Para a Renascença a Realidade é a Alma; para o Romantismo a Realidade é a Natureza. Ora, como o nosso conhecimento não tem outros além da Alma e da Natureza, a nova Renascença (chamemos-lhe assim) não tem outra coisa que tomar para Realidade. A sua originalidade só poderá vir portanto de uma fusão do psiquismo da Renascença com o psiquismo do Romantismo.

Não há outra hipótese concebível.

Essa fusão, porém, produz um facto curioso — a coexistência de dois sentimentos da Realidade, uma dupla noção de Realidade. Mas só pode haver noção de uma Realidade; a Realidade é concebível só como uma. Resulta, portanto, que para a Nova Renascença a Realidade deverá ser fusão de Natureza e Alma. A realidade será pois Natureza-Alma. Isto é, pela Nova Renascença a Natureza será concebida como Alma.

Ora eu creio que o professor Adolfo Coelho é suficientemente inteligente para perceber que estamos em plena descrição da nova poesia portuguesa. Os característicos que deduzimos como devendo infalivelmente ser os da poesia da Nova Renascença coincidem em absoluto com os característicos patentes da nossa novíssima poesia.

Provas? Devem ser escusadas para qualquer criatura capaz de seguir um raciocínio e ler uma página. Leia o professor Adolfo Coelho as poesias características dos nossos novíssimos poetas; medite todos os artigos de Teixeira de Pascoaes — cada verso trai o conceito de Natureza-Alma, cada frase desses artigos o exprime.

Para não fugir, porém, ao exemplo directo e individual, examinemos aqueles dois trechos citados por mim e re-citados pelo professor Adolfo Coelho, cuja erudita incompreensão não encontrou diferença entre eles e uma estância, citada, de Byron, inteiramente diversa no seu sentimento, perfeitamente romântico, de Natureza como Natureza. O primeiro trecho é este, de Jaime Cortesão:

E, mal o luar os molha,

Os choupos, na noite calma,

Já não têm ramos nem fôlha,

São apenas choupos de alma.

Aqui temos, flagrantissimamente, o material concebido como espiritual — choupos de alma. Vejamos o outro trecho: são os dois versos de Pascoaes:

A fôlha que tombava

Era alma que subia.

Aqui temos o acto material, que é a queda de uma folha, concebido como acto espiritual; e repare o professor Adolfo Coelho que Pascoaes não compara a queda da folha à ascensão da alma — a queda da folha é, materialmente, a subida da alma.

Comparando estes maravilhosos trechos a trechos de Byron e de Vítor Hugo, mostrou o professor Adolfo Coelho que não sabe olhar para além das palavras, e da mera gramática das frases.

Eu bem sei que o professor Adolfo Coelho não pode sentir a nossa nova poesia; ouso esperar que possa compreendê-la de longe, através do meu raciocínio.

Que provámos, pois?

Que a nossa nova poesia é a poesia auroral de uma Nova Renascença, que é uma poesia perfeita e plenamente original. Mas, como acima vimos, se é perfeitamente original, é equilibrada: erram, portanto, os que a consideram doentia e confusa, lançando sobre ela a sombra da sua própria incompreensão. Se é original e equilibrada resulta, como acima provámos, que é inteiramente nacional: erram, portanto, quantos falam em estrangeirismo a propósito dela. Se é original, equilibrada e nacional produz ou produzirá, como acima o mostrámos, grandes e máximas figuras de poeta: erra, portanto, o professor Adolfo Coelho, primeiro, quando acha inferiores os nossos novíssimos poetas, e depois quando considera messianismo a ideia de um super-Camões, isto é, de um poeta máximo, inevitavelmente maior do que aquele poeta verdadeiramente grande, mas longe de ser um Dante ou um Shakespeare.

São estas, meu caro amigo, as considerações que julgo indispensáveis como resposta ao professor Adolfo Coelho. Servem, ao mesmo tempo, como viu, para responder a outros adversários da Renascença Portuguesa.

Repliquei com perfeita serenidade, 1. ° porque o professor Adolfo Coelho com isenção de dureza escreveu, e 2. ° porque de outro modo não poderia escrever em atenção à sua pessoa e ao seu jornal. Para o folheto que preparo reservo o tratar no tom que julgar merecido alguns indivíduos pouco inteligentes ou menos correctos, que tem deposto no seu inquérito.

Desculpe-me o espaço que lhe tomei e disponha sempre do seu amigo e admirador,

Fernando Pessoa.

1912

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

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Lacunas completadas segundo o original: «Inquérito à vida literária» in “República”, Lisboa: Set. 1912.