Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

AS CARICATURAS DE ALMADA NEGREIROS

AS CARICATURAS DE ALMADA NEGREIROS

A arte chamada satírica é aquela cujo intuito consiste traduzir um objecto, sem erro de tradução, para inferior a si-próprio. Baseia-se por isso em um dos três sentimentos donde essa intenção pode nascer — o ódio ou aversão, o desprezo, e o interesse fútil, e consciente de ser fútil, que é uma espécie de desprezo carinhoso. A revolta, o riso, o sorriso — eis as três manifestações que consoante o sentimento gerador, tenta produzir com respeito ao objecto que trata.

Toda a outra arte procura tornar o seu objecto superior a si-próprio, busca nele uma qualquer espécie de além-ele.

Desde que a intenção da arte deixe de ser o tornar o objecto superior a si-próprio, passa fatalmente a ser o torná-lo inferior a si-próprio, visto que a via média não existe, porque (pois que a arte é essencialmente interpretação) uma coisa é igual a si-própria nunca na arte, mas só na vida.

Basta considerar um objecto futilmente, como meramente interessante, para o inferiorizar, visto que cada Coisa ou Sensação, momento espacial ou psíquico do Mistério, ou, pelo menos, da Vida, basta que seja considerada sem uma consciência clara ou obscura de que é isso, para ser ipso facto traduzida para inferior a si-própria.

Daí o existir, além do ódio (que produz a revolta) e o desprezo (que produz o riso), o interesse fútil (que produz o sorriso) como sentimento gerador de obra satírica, propriamente assim chamada.

Daí o carácter basilarmente negativo da arte satírica.

Acontece porém que toda a arte é criação; ora sendo toda a arte criação, e sendo toda a criação, por sua natureza, afirmação, resulta que a arte satírica, que é negativa, encerra em sua essência o paradoxo de que é grande na proporção em que sai para fora de ser satírica. Quanto mais satírica menos satírica. Aí estão o «Dom Quixote» e «A Tale of a Tub» a pedirem que os citemos como exemplos.

Não se julgue porém que isto — mera constatação — leva escondido o puxar para desprezível a arte de satirizar. Nessa arte, como na outra, pode haver, e em cada um dos seus três géneros, brilhantismo, talento e génio. Pode haver mesmo um artista genial em nos dar o interesse fútil das coisas; basta que no-lo dê com a plena dolorosa consciência dessa futilidade. E isso é porque (voltemos ao mesmo paradoxo) já essa dor da consciência do fútil nos leva para além da sátira.

Porque o génio satírico é aquele que, quer faça sátira pelo ódio, quer pelo desprezo, quer pelo interesse fútil, nos dá o além odioso, o além ridículo, o além fútil. O talento, em qualquer dos três géneros, será aquele que cegantemente, multiformalmente, nos der o fútil como fútil, o ridículo como ridículo o odioso como odioso. — O meramente inteligente ou brilhante será aquele que, não sem individualidade, mas sem vincada forma pessoal e acentuado polimorfismo, nos der o que ao seu género convenha.

Se, de posse destes claros elementos para a crítica, nos aproximarmos da obra de Almada Negreiros, agora exposta em Lisboa, não teremos dificuldade para pragas em lhe encontrar classificação.

Almada Negreiros pertence aos satiristas que se aplicam a dar a futilidade das coisas. A sua arte é suavemente para o sorriso. Não tem nem ódios nem desprezos, pelo menos artisticamente; por isso a sua arte não nos deixa na alma rasto de revolta ou eco de gargalhada. Ele observa interessadamente, mas não traz, pelo menos por enquanto, sentimentos profundos para a sua observação. Vê, acha curioso, e fixa em traço e cor o sorriso da sua alma atenta.

Isto, porém, é uma classificação de espécie, não de valor. O que nos importa saber é o valor do artista dentro do género a que pertence.

Que Almada Negreiros não é um génio — manifesta-se em não se manifestar. Nada de dolorosamente consciente de quanto o fútil simboliza e resume das coisas da Vida. Um ou outro assunto é tratado mais a sério; mas nem esse sério leva em si pequena porção que seja de individualidade e especialidade, nem, mesmo, o sério é o doloroso.

Mas que este artista tem brilhantismo e inteligência, muito e muita — eis o que está fora de se poder querer negar. Mas terá talento? O ponto para quem quer discutir é este.

Eu creio que ele tem talento. Basta reparar que ao sorriso do seu lápis se liga o polimorfismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe inteligência apenas.

É interessante de vários modos, interessado de várias maneiras na futilidade da Vida, apanhando-lhe ora este, ora aquele, momento de espuma, sem consciência, infelizmente, de que essa espuma é a orla de um mar antigo, vasto e misterioso.

E o seu polimorfismo — a que atribuí-lo, cingindo-nos criticamente só a ele? Será poliaptidão do artista, incerteza em encontrar-se, ou uma assemelhável imitação ou adaptação a vários géneros? Creio na Síntese, sempre, e aqui ela vem em meu auxílio. Porque me parece que de todos estes três elementos se forma o multiforrnismo do artista. Há qualquer coisa de procurar; há, infelizmente, também qualquer coisa de achar (nos outros); — mas há também, para quem sabe ver, nitidamente personalidade e originalidade através de essas influenciações e tentativas.

1913

Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

 - 99.

1ª publ. in “A Águia”, 2ª série, nº 16. Porto: Abr. 1913.