[Carta ao director de A Capital - 1915]
De modo que, se V. Ex. me garante — e agora, vendo as coisas mais calmamente, estou certo que assim é — que o seu primitivo artigo não era escrito no espírito de pura insolência, e que não havia a intenção de insultar o Orfeu, atribuindo aos seus colaboradores o plano de uma récita onde se plagiava imbecilmente as mais imbecis produções de Marinetti, eu desde já declaro não ter dúvida em dar por não escritas as frases que constituem a única parte da minha carta, que podia ser tida por insolente.
Resta um ponto, e este, quero frisá-lo claramente, para que nenhuma dúvida reste. A minha carta terminava com as frases, que na Capital foram transcritas, sobre o desastre acontecido ao chefe do partido cognominado democrático. Apontou v. Ex ª à execração pública o autor de semelhante trecho, desapiedado e mau. Peço encarecidamente a V. Ex ª que me deixe vincar bem o quanto eu, longe de retirar essas frases, mais convictamente e mais ardentemente as apoio e as vinco. O chefe do partido democrático não merece a consideração devida a qualquer vulgar membro da humanidade. Ele colocou-se fora das condições em que se pode ter piedade ou compaixão pelos homens. A sua acção através da sociedade portuguesa tem sido a dum ciclone, devastando, estragando, perturbando tudo, com a diferença, a favor do ciclone, que o ciclone, ao contrário de Costa, não emporcalha e enlameia. Para o responsável máximo do estado de anarquia, de desolação, e de tristeza em que jazem as almas portuguesas, para o sinistro chefe de regimentos de assassinos e de ladrões, não pode haver a compaixão que os combatentes leais merecem, que aos homens vulgares é devida. Costa nem sequer tem o relevo intelectual que doure a sua torpeza. A sua figura é a dum sapo que misteriosamente se tornasse fera. Pode ter-se compaixão por aqueles por quem se tem ódio. É impossível a compaixão por aqueles que não podem deixar de inspirar ódio e nojo, conjuntamente. Por isso eu quero frisar — e sei que ao frisá-lo estão comigo os votos de grande número dos portugueses, dos católicos oprimidos, das classes médias atacadas, dos cidadãos pacíficos assaltados nas ruas, de todos aqueles que o General Pimenta de Castro representava — que só não se regozija, no desastre acontecido a Costa, a circunstância, que infelizmente se parece confirmar, do seu restabelecimento. Esse homem — esse homem sem relevo espiritual, sem nobreza de carácter, que nunca teve uma ideia elevada, um gesto generoso, um momento de ternura — esse homem não pertence ao número daqueles por quem nós podemos sentir humanamente.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
- 66.Carta não enviada