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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Não quero ir onde não há a luz,

Não quero ir onde não há a luz,

Do outro lado abóbada do solo,

Ínfera imensa cripta, não mais ver

As flores, nem o curso ao sol de rios,

Nem onde as estações que se sucedem

Mudam no campo o campo. Ali, no escuro,

Só sombras múrmuras, êxuis de tudo,

Salvo da saudade, eternas moram;

Região aos mesmos íncolas incógnita,

Dos naturais, se os tem, desconhecida.

Ali talvez só lírios cor de cinza

Surgirão pálidos da noite imota.

Ali talvez só gelo com as águas,

Como a cegos, serão, e o surdo curso,

No côncavo sossego lamentoso,

Se acaso à vista habituada aclare,

Será como um cinzento tédio externo.

Não quero o pátrio sol de toda a terra

Deixar atrás, descendo, passo a passo,

A escadaria cujos degraus são

Sucessivos aumentos de negrume,

Até ao extremo solo e noite inteira.

Para que vim a esta clara vida?

Para que vim, se um dia hei-de cair

Da haste dela? Para que no solo

Se abre o poço da ida? Porque não

Será sem fim  [?...]

16-11-1932

Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990).

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