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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

A civilização europeia assenta em cinco tradições fundamentais,

A civilização europeia assenta em cinco tradições fundamentais, fora das quais só há desequilíbrio e ruína. Elas são como a forma íntima do nosso organismo psíquico; afastarmo-nos delas é afastarmo-nos da civilização. Essas cinco tradições são as seguintes:

A tradição helénica, que constitui a base cultural da nossa civilização. Caracteriza-se a tradição helénica pelo individualismo intelectualista. Romperam esta tradição, envolvendo os povos europeus em decadência e ruína, (1) o espírito romano, que se afastou do individualismo, (2) o espírito cristão, que se afastou do intelectualismo, (3) o espírito romântico e revolucionário dos nossos tempos, que se afastou ou ora de um, ora de outro — sendo individualista e anti-intelectual nos românticos, e intelectual mas colectivista na reacção germânica contra eles.

A tradição romana, que constitui a base da política externa da nossa civilização. Resume-se a tradição romana no imperialismo. Esta tradição foi menos quebrada que a anterior, porque o imperialismo tem mais força sobre a imaginação do homem que as duas ideias componentes da tradição helénica. Em todo o caso, (...)

Por imperialismo não se entende o agrupamento artificial de várias nações em uma só, mas a tendência de toda a nação para converter em sua substância psíquica as outras nações. Voluntariamente, foi esta tradição menos quebrada que a anterior, porque o imperialismo tem mais força sobre a imaginação do homem que as duas componentes da tradição helénica. Involuntariamente, porém, foi quebrada bastantes vezes, já pelos imperialismos espúrios de Carlos Quinto e os Filipes, de Bismarck, já pelo imperialismo errado de Napoleão, que, para a invasão cultural, levava uma base errada na cultura revolucionária francesa. Só de certo modo realizaram a tradição imperial, por ordem cronológica, os Portugueses nas suas colónias, os Espanhóis nas deles, e, acima de todos, os Ingleses.

A tradição monárquica e aristocrática, base da política interna das nações componentes da civilização europeia. Nos tempos modernos esta tradição, verdadeiro fundamento da nossa civilização e da ordem que lhe é própria, tem sido escandalosamente quebrada, pelos vários constitucionalismos, pelas (...)

A tradição nacionalista, nascida no fim da Idade Média e de então para cá prolongada.

A tradição económica, representada pelos três princípios da propriedade individual, do capitalismo e do regime de concorrência. Não há idiota de cátedra, ou alienado de fábrica que não seja inspirado por Momo para erguer-se contra estes três princípios económicos, em os quais a nossa civilização assenta.

Pode ser que em outra época da terra, que em outro planeta, que em uma terra de outro sistema solar outros princípios sejam válidos para a manutenção da civilização e de tudo o que ela representa. Entre nós, europeus, não. São ne varietur.

A ciência não é fruto do nosso arbítrio.

A tradição helénica tem como inimigos — à parte os políticos humanitários e radicais, que, sendo mentalmente da raça dos escravos, são inimigos de todos os valores civilizacionais — todas as formas do cristianismo e sobretudo as protestantes (por serem mais hebraicas); (...)

A tradição romana tem por inimigos os humanitários.

A tradição monárquica e aristocrática os republicanos, os monárquicos constitucionais e, entre a plutocracia, a de origem internacional, isto é, judaica.

São inimigos intelectuais do helenismo todos os que põem as fórmulas acima do individualismo, ou a emoção acima da razão.

[...]

A própria tradição hermética, por assim dizer intelectual e aristocrática, como era lógico que fosse, foi invadida pelo teosofismo hindu, estruturalmente seu inimigo, fortemente emotivo e passivo e trazendo consigo a doutrina repugnante e ímpia da

igualdade dos sexos e das raças (e das classes em que a sociedade se divide). Nem os santuários do Oculto (aparentemente) escaparam à souillure romântica.

Bases de uma doutrina tradicionalista

(para uso de europeus)

A ciência foi desviada do seu curso intelectual.

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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