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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Diálogo na treva?

                (Diálogo na treva?)

Cresce em mim uma onda de agonia

E de calado horror que surge e salta

Pelas cavernas fundas da minha alma

E em fissuras ocultas do meu ser

Aponta-as aparecendo, uma onda turva

Duma maré silenciosa e escura

Que cresce e ocupa-me e me afoga em mim.

Quero fugir-lhe e soerguer-me, abrir

Um voo e ela sobe-me, silente,

Em     (...)  naufragadora.

Cresce em mim e eu transido desse horror

Vejo sempre mais perto do que cria

Sempre em remotas dobras elevando-se

Das solidões do meu ser e cada vez

Mais dentro em mim.

Sois um desejo, uma ânsia, uma agonia?

O que quereis, que me impelis subindo

Não sei para que horror velando um fim?

Para que sou eu vosso? Aonde levais

Esta alma que só sabe resistir? Ergueis-me

Em guerra contra o ser, e eu odeio

O que vejo em minha frente, O Imediato.

Por isso, oh mares, sóis, estrelas, ventos,

Oh enigmas parados numa vida

De enigmas cheia desprendidamente,

Eu dou-vos vida só para odiar-vos,

Eu não sou vosso. Deste dia avante

Sou o inimigo de ser, sou o hórrido,

(...)

O crime eterno de não ter razão

De existir e fitar-me. Digo adeus

A tudo que se pode amar ou crer,

A tudo que na terra vive ou dorme.

Cousas com um sol exterior vão [...]

Eu faço-vos escuras do meu ódio.

Caia uma treva imensa na minh’alma

Para com tudo, seja eu a noite,

Esquecendo-se em ser.

                                      Sobe,

Avassala-me, túrbida corrente,

Mas tu e eu em ti. Ciência,

Eu substituo-vos a escuridão

Da essência do meu ser e vosso ser.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

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