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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

A vida é má e o pensamento é mau,

A vida é má e o pensamento é mau,

Mas eu temo com mudo e íntimo horror

A morte, pois concebo-lhe como essência,

Olhando-a do movimento e (...) da vida,

Uma monotonia não sei qual,

Cujo pressentimento desvaria

O meu incoerente pensamento.

Essa monotonia que me nasce

Da incompreensão, de nela suspeitar

Diferença suprema do viver,

Pavoroso contrário do bulício

E movimentação da vida vã

Que inda assim entretém meus olhos tristes;

Essa ideia de (...) monotonia —

Imovidamente concebi-a [ ?] —

Faz-me o horror elevar-se até loucura

Conscientemente, pavorosamente.

E eu sinto um arrepio de pavor,

Em torno meu o mundo oscila, o ser

Oscila, e a consciência de sentir

Desfaz-se em sensações de pensamento

E distúrbios obscuros de ideação,

Embebidos num sonho de sentir

E sonhado sentimento de sonhar.

Horror supremo! E não poder gritar

A Deus — que Deus não há — pedindo alívio!

A alma em mim se ironiza, só pensando

Na de pedir ridícula vaidade,

Interrupção da determinação

E férrea lei do mundo.

Górgias, antigo Górgias, que dizias

Que se alguém algum dia compreendesse,

Atingisse a verdade, não podia

Comunicá-la aos outros — já entendo

O teu profundo e certo pensamento

Que ora não compreendia. Tenho em mim

A verdade sentida e compreendida,

Mas fechada em si mesma, que não posso

Nem pensá-la. Senti-la ninguém pode.

Cada homem tem em si — eu chego a crer

E tu Platão sonhaste-o — a verdade,

Sem consciência de a possuir.

Pois o inanalisado sentimento

E inanalisável, de viver,

De existir, da existência, e do existente

Não tem em si verdade? Pois o Ser

Mesmo na inconsciência não é Ser...

Mas inconsciência como? Nada sei.

Eu quero desdobrar em conhecidos

A unidade da verdade que eu

Possuo dentro em mim e certa sinto,

E ela não pode assim ser desdobrada.

Negro horror d'alma! Ah como estou só!

No isolamento negro de quem pensa

E além naquele de quem sabe

E nada dizer pode!

Como eu desejaria bem cerrar

Os olhos — sem morrer, sem descansar,

Nem sei como — ao mistério e à verdade,

E a mim mesmo — e não deixar de ser.

Morrer talvez, morrer, mas sem na morte

Encontrar o mistério face a face.

Só, tão só! Olho em torno e vejo o riso,

As lágrimas (...) e não percebo

Qual a essência e (...) disso tudo.

Sinto-me alheio pelo pensamento,

Pela compreensão e incompreensão.

Ando como num sonho. Compungido

Pelo terror da morte inevitável

E pelo mal da vida que me faz

Sentir, por existir, aquele horror -

Atormentado sempre.

                                Objectos mudos

Que pareceis sorrir-me horridamente

Só com essa existência e estar-ali,

Odeio-vos de horror. Eu quereria

(Ah pudesse eu dizê-lo — não o sei)

Nem viver nem morrer — não sei o quê,

Nem sentir nem ficar sem sentimento...

Nada sei... Serão frases o que digo

Ou verdades? Não sei... eu nada sei...

Não posso mais, não posso, suportar

Esta tortura intensa - o interrogar

Das existências que me cercam... Vamos,

Abramos a janela... Tarde, tarde...

E tarde... Eu outrora amava a tarde

Com seu silêncio suave e incompleto

Sentido além

Da base consciente do meu ser...

Hoje... não mais, não mais me voltarão

As inocências e ignorâncias suaves

Que me tornavam a alma transparente...

Nunca mais, nunca mais eu te verei

Como te vi, oh sol da tarde, nunca,

Nem tu, monte solene de verdura,

Nem as cores do poente desmaiando

Num respirar silente. E eu não poder

Chorar a vossa perda (que eu perdi-vos),

Mas nem as lágrimas poder achar -

Por amargas que fossem — com que outrora

Eu me lembrava que vos deixaria.

Nem em vós o mistério me abandona,

Nem a vossa beleza em mim ignora

Que vós, da beleza a própria essência,

Inomináveis são! E mais sublime

Apenas o mistério em vós; e não

Como nas cousas simples horroroso...

Nas cousas[?] que em meu quarto contemplando

Me horrorizo... Estremeço, como sinto

Atrás de mim o mistério! Já não ouso

Voltar-me e ver... E ver! Delírio insano...

Ver? A que loucura, a que delírio

A sensação aguda do mistério

Me leva... Nunca mais eu terei paz...

Céus, montes pedir-vos não poder

Que entorneis na minha alma esse segredo

Que vos faz existir e eu sentir-vos!

Não poder oração de arte negra

(Puerilidades não! para quê citá-las?)

Provocar a verdade a que se mostre...

Se mostre como? Oh, minha alma amarga,

Cheia de fel, e eu não poder chorar!

Quem sente chora, mas quem pensa não.

Eu, cujo amargor e desventura

Vem de pensar, onde buscaria lágrimas

Se elas para o pensar não foram dadas?

Já nem sequer poder dizer-vos: Vinde,

Lágrimas, vinde! Nem sequer pensar

Que a chorar-vos ainda chegarei!

(Cai de joelhos ante a janela, a cabeça sobre os braços, olhando distraidamente para longe)

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva . Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

 - 26.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos . Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.102).