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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável:

O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável: o país estaria preparado para a anarquia; para a república é que não estava. Grandes são as virtudes [de] coesão nacional e de brandura particular do povo português para que essa anarquia que está nas almas não tenha nunca verdadeiramente transbordado para as coisas!

Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos — porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida), gatunos com seu quanto de ideal verdadeiro, anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos

de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regime a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República.

A monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis de família, a lei de separação da Igreja do Estado — todas foram decretos ditatoriais, todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais.

A monarquia havia desperdiçado, estúpida e imoralmente, os dinheiros públicos. O país, disse Dias Ferreira, era governado por quadrilhas de ladrões. E a república que veio multiplicou por qualquer coisa — concedamos generosamente que foi só por dois (e basta) — os escândalos financeiros da monarquia.

A monarquia, desagradando à Nação, e não saindo espontaneamente, criara um estado revolucionário. A república veio e criou dois ou três estados revolucionários. No tempo da monarquia, estava ela, a monarquia, de um lado; do outro estavam, juntos, de simples republicanos a anarquistas, os revolucionários todos. Sobrevinda a república, passaram a ser os republicanos revolucionários entre si, e os monárquicos depostos passaram a ser revolucionários também. A monarquia não conseguira resolver o problema da ordem; a república instituiu a desordem múltipla.

É alguém capaz de indicar um benefício, por leve que seja, que nos tenha advindo da proclamação da República? Não melhorámos em administração financeira , não melhorámos em administração geral, não temos mais paz, não temos sequer mais liberdade. Na monarquia era possível insultar por escrito impresso o Rei; na república não era possível, porque era perigoso, insultar até verbalmente o Sr. Afonso Costa.

O sociólogo pode reconhecer que a vinda da república teve a vantagem de anarquizar o país, de o encher de intranquilidade permanente, e estas coisas podem designar-se como vantagens porque, quebrando a estagnação, podem preparar qualquer reacção que produza uma causa mais alta e melhor. Mas nem os republicanos pretendiam este resultado nem ele pode surgir senão como reacção contra eles.

E o regime está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional — trapo contrário à heráldica e à estética porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português — o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que por direito mental, devem alimentar-se.

Este regime é uma conspurcação espiritual. A monarquia, ainda que má, tem ao menos de seu o ser decorativa. Será pouco socialmente, será nada, nacionalmente. Mas é alguma coisa em comparação com nada absoluto que a república veio [a] ser.

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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