Até agora, na história da humanidade,
Da Ditadura à República
Até agora, na história da humanidade, uma vez esta saída da primitiva "homogeneidade incoerente e indefinida", não tem sido concebível modo de organização da socied. outro que um nitidamente estadual. Isto é, o modo de existir social anarquístico (não tem na história exemplo, a não ser que se remonte — e é mais em imaginação do que em ciência que se remonta — a uma tão animal primitividade que a própria imaginação, que a ideia reconhece, por a reconhecer anti-social, como fora da raciocinativa para a discussão sociológica.
Vê-se, pois, que toda a vida social, no que política, se resume, primariamente, na espontânea cisão funcional (e como vai ver-se, é necessariamente estrutural) dos indivíduos em governantes e governados; e, por isso, o único aspecto sociológico do poder político cifra-se na consideração de como em qualquer sociedade os governantes se formam, se diferenciam
se relacionam com os governados. É, assim, mais útil e orgânico na vida social, do que parece, o escolher dentro das formas de governo, e quiçá, na base, nada mais de como a cisão de governantes e governados se faz porque, no resto do mundo dessa cisão nascerá para o raciocínio o envolvido inter-relacionamento de classes que essa cisão intrinsecamente importa.
Procurou-se, em princípio, desvendar quais as características essenciais de toda a classe de governo, correndo o raciocínio sobre todas as guerras de sociedade(s). Uma dessas características é logo evidente: toda a classe governante é sempre uma minoria . Porque, claro é — governar é uma especialização.
A diferença entre uma aristocracia e uma democracia é que numa aristocracia os governantes são uma classe , especialista pelos hábitos e tradições e aprendizagem de governo, corno os sapateiros, os alfarrabistas e outros artistas no seu ramo; ao passo que numa democracia os governantes são, não uma classe, mas uma acumulação de indivíduos.
Por isso a natureza essencial de uma democracia é ser individualista. Toda a democracia que o não for falta e trai a sua natureza de democracia.
Na democracia pura não há limite a esse acesso individual; na democracia limitada há-de (...)
No regime monárquico o rei ocupa a mesma posição que no regime democrático ocupa o povo; é em ambos os casos ilusória a força política e muito real a aplicabilidade política.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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