[Cartas a João Gaspar Simões - 25 Fev. 1933]
Apartado 147.
Lisboa, 25 de Fevereiro de 1933.
Meu querido Gaspar Simões:
Muito obrigado pelo empréstimo do exemplar dos Cahiers du Sud. Devolver-lho-ei na segunda‑feira. Não estou, é claro, tão livre de vaidade que não ficasse muito contente com o artigo do Hourcade. Não lhe escrevo por enquanto, a agradecer, pois acabam aqui de me informar – alguém que falara com o Bourdon, que não conheço – que era provável que o Hourcade viesse para Lisboa, contratado para a Faculdade de Letras.
Sabe v. alguma coisa disso? Muito me agradaria que fosse verdade.
Quero, agora, referir-me ao assunto que deixei suspenso – o de um livro meu para a colecção da Presença. Reflectindo – que era o que ia fazer –, encontrei qualquer coisa de preferível a um dos livros do Cancioneiro. De preferível em três sentidos – mais breve (embora, é certo, não muito mais breve), muito superior, e muito mais de acordo com a publicação de coisas «novas» que será por certo a intenção dos livros projectados. Proponho-me dar-lhe O Guardador de Rebanhos do Caeiro, completo, com os seus 49 poemas. Está nas condições que acima lhe indiquei, e está pronto, salvo qualquer revisão verbal, que se pode fazer no próprio processo de o passar a limpo.
O meu primitivo intuito, quanto a Caeiro, era de publicar, num só livro, os Poemas Completos (O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso, Poemas Inconjuntos). Sucede, porém, que não tenho reunidos ainda todos os poemas inconjuntos, nem sei quando os terei; e, ainda, que esses precisam de uma revisão de outra ordem, já não só verbal mas psicológica. E o que, como acima disse, não sucede com O Guardador de Rebanhos, como, aliás, não sucede com os cinco ou seis poemas do Pastor Amoroso.
Diga-me o que pensa deste propósito, assim como de outro, que também agora me ocorreu, e que exponho a seguir.
Querem vv. publicar, num desses volumes, os Indícios de Ouro do Sá-Carneiro? E o livro inédito dele, e esse está pronto, tal qual é, a ser publicado. Não é o caso das Obras Completas, sobre as quais há a dificuldade de eu querer procurar, através do grande número de cartas que tenho, outros poemas não incluídos nos Indícios de Ouro, e dignos de figurar nessa edição definitiva. Acresce que ainda não perdi de todo a esperança de que algures, na posse não sei de quem, possa existir o original do primeiro capítulo do Mundo Interior, maravilhoso trecho de prosa que o Sá-Carneiro me leu aqui em Lisboa e de que sei que não houve continuação.
Publicando o livro de poemas do Sá-Carneiro conseguem, de certo modo, justificar-se perante os leitores da Presença do não aparecimento da anunciada edição das obras completas dele. É, aliás, assunto que poderia ser referido, passim num breve prefácio. A obra do Sá-Carneiro – salvo os tais inéditos possíveis – ficaria assim inteiramente publicada.
Se v. acha isto bem, ou acha bem ambos os istos, diga-me quando quer os originais. E, se houver inconveniente na publicação dos dois livros, já v. sabe que deve publicar o do Sá-Carneiro, de preferência ao meu.
De facto, e para dizer qualquer coisa parecida com a verdade, gostaria que vv. publicassem O Guardador de Rebanhos. Teria eu assim o prazer de serem vv. que apresentassem o melhor que eu tenho feito – obra que, ainda que eu escrevesse outra Ilíada, não poderia, num certo íntimo sentido, jamais igualar, porque procede de um grau e tipo de inspiração (passe a palavra, por ser aqui exacta) que excede o que eu racionalmente poderia gerar dentro de mim, o que nunca é verdade das Ilíadas.
Sou devedor a vv. de tantas e tão acumuladas gentilezas que dar-lhes menos que o meu melhor, podendo dar esse melhor, não seria desculpável.
Abraça-o o amigo e admirador sempre reconhecido,
Fernando Pessoa.
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).
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